Monday, March 20, 2006

Colunas do Semana 3

As colunas de Alexandre Soares Silva, Delfin (quadrinhos), Ricardo Meirelles (economia), Wagner Geribello (mídia), Marcelo Träsel (gastronomia) e Bruno Ribeiro (boteco, política & afins), publicadas entre maio de 2004 e março de 2006 no jornal e, depois, revista Semana 3.


Alexandre Soares Silva, Ricardo Meirelles, Wagner Geribello, Delfin, Marcelo Träsel e Bruno Ribeiro

Alexandre Soares Silva, março de 2006

Sai de mim, Rubem Braga

A crônica é o mais cretino dos gêneros literários porque é o único que se dedica completamente à celebração do homem comum. Quando é um homem incomum celebrando o homem comum, temos uma crônica boa (se é que existem crônicas boas. Estou deduzindo a existência de uma crônica boa por raciocínio, mas nunca li nenhuma). Em outras palavras, temos um homem incomum ao mesmo tempo escrevendo bem e sendo demagógico; elogiando quem está abaixo dele e seu estilo de vida e lhe dando um tapinha sintático na cabeça.

Quando é um homem comum celebrando o homem comum, temos todas as outras crônicas que já vimos na vida, em todos os jornais. Olha lá o cronista sentado no banco da praça olhando os passarinhos. Os próprios passarinhos o odeiam. Se os passarinhos escrevessem crônicas, seriam textos xingando Rubem Braga de corno e Paulo Mendes Campos de sifilítico. A obsessão dos cronistas (e dos músicos populares) por passarinhos é estranhamente parecida com a obsessão de um autista por duas dezenas de clipes caídos no chão. Vai ler um livro!

Ou então está no banco da praça falando dos, meu Deus, “tipos de minha infância” pra quem chegar perto. O Zé Bolacha, que comia muita bolacha! A Maria da Sarna, que tinha sarna! O Juca da rua de cima, que era dono da bola de capotão! Quando leio as palavras “bola de capotão”, fecho o livro; mas tarde demais, porque já devia ter fechado na palavra “Zé”.

Por favor, não me fale dos seus joelhos esfolados de guri, nem da professora azeda que um dia (oh!) chorou na classe por causa da morte da filha dela, lhe ensinando assim que pessoas azedas também choram e lhe dando para sempre uma lição da fragilidade da vida! Nem da menina que fazia favores sexuais no terreno baldio atrás da marmoraria. E se for jornalista faz tempo (por oposição ao cronista-romancista e ao cronista-publicitário), chega de anedotas pitorescas sobre Adolpho Bloch, entremeadas por mais anedotas pitorescas sobre Adolpho Bloch, e passando por anedotas pitorescas sobre Samuel Wainer (“um dia ele tirou a meia e ih, rapaz, tava fedido. Aí o Filinto Muller disse “Ih, rapaz, cobre isso”. Daí eu fui trabalhar no Zero Hora”). Cronistas-jornalistas acreditam que Adolpho Bloch era uma espécie de Samuel Johnson, e que os menores detalhes de sua vida merecem ser recordados. Não, nem os fatos principais da vida de Adolpho Bloch merecem ser recordados. Quero esquecer quem foi Adolpho Bloch com a volúpia dos desesperados. E o primeiro que chamar Samuel Wainer de Samuca vai levar com a minha edição das Obras Completas de Carlyle no nariz.

O problema da crônica é o seu humanismo de tio chato que vem visitar no domingo. Ele vem e senta do lado do sobrinho, que está vendo tevê, e fica falando que quando era criança caçava passarinho com bodoque. Ok, tio. Você já disse isso no domingo passado. Mas o tio fica listando tipos de passarinho: “Ih, a gente caçava corruíra... pichochó... a gente caçava caboclinho... gaturamo, sanhaço... ”

Não que exista outro tipo de humanismo além do humanismo de tio chato, do humanismo gaturamo, sanhaço, corruíra, do humanismo leila diniz djavan chico, ai minha iáiá, meu nhonhô, saravá meu filho, o-meu-porquinho-da-índia-foi-a-minha-primeira-namorada; esse humanismo Irene-preta, Irene-boa, Irene-sempre-de-bom-humor. O humanismo é isso, uma coisa pequena e despretensiosa e jeitosinha. A princípio atrai simpatia porque é, bem, pequeno e despretensioso e jeitosinho. Não bate nele, está aí sentado no banco da praça sem fazer mal pra ninguém. Talvez tenha tido um derrame, está de boca aberta nesse sol faz uma hora já.

O humanismo é do que o Brasil é capaz de melhor, o ponto máximo que um espírito completamente identificado com o espírito nacional é capaz de atingir, nas duas vertentes Crônica e Bossa-nova. Não é ruim. Na França um humanismo muito parecido, só um pouco menos desmilinguido, deu Simenon, que é bom. Deu os filmes de Truffaut, que são mais do que bons. Mas não vai além disso, e na maior parte do tempo fica bem abaixo disso.

O Brasil não é capaz de ir além disso, e na maior parte do tempo fica bem abaixo disso. Vai ficar para sempre sentado num banco de praça, olhando os passarinhos com cara de bobo, falando da Maria Sarnenta da infância dele, que era meio retardadinha, coitada, e tinha olhos de traíra.

Podia ser pior? Podia. Há ideologias piores? Há, muito piores. Graças a Deus pela crônica e pela bossa-nova, porque o Brasil sem isso seria medonho demais para a contemplação humana. Pessoalmente nunca consigo ler Rubem Braga muito tempo sem sentir vontade de ler Nietzsche (não sou um grande fã de nenhum dos dois), mas reconheço uma coisa: associar o pensamento de Nietzsche ao nazismo é uma distorção do pensamento de Nietzsche, mas não uma distorção completa: alguma coisa nele (admiração pela crueldade, pelo “homem forte”) pode ir dar no nazismo se exagerado, ao mesmo tempo que nada na filosofia de Rubem Braga (passarinho é bonitinho, mulher é fascinante, banho de mar é gostoso) jamais vai dar em nada muito ruim, por mais exagerado que seja.

Sei disso. Mas chegamos a esse ponto? Temos que ter pena dos cronistas porque eles estão sentados quietinhos e pelo menos não são nazistas? É isso o melhor do que o espírito nacional é capaz de produzir, alguém que é bonzinho e não aderiu ao Partido Nazista porque perdeu a sunga na correnteza e está pedindo ajuda no Posto 6? Ok, entre um nazista e o tio Valdir olhando pombo na praça escolho o tio Valdir – mas só temos essas duas possibilidades?

Levanta desse banco, carioca! Pára de molestar o colibri! É impossível olhar para um cronista por muito tempo sem sentir uma vontade incontrolável de sacudi-lo freneticamente pelo colarinho.

(Publicado originalmente na edição 37, de março de 2006, da revista Semana 3)

Alexandre Soares Silva, dezembro de 2005

Heather Graham não fica em casa



Nunca entendo o motivo das pessoas saírem de casa. Suponho que tenham casas ruins. Aquela multidão de pessoas na avenida, paradas vendo teatro de rua ou coisa que o valha, todas com casas ruins. Aquelas pessoas paradas no shopping vendo a tevê que fica na vitrine, o que diabos é aquilo? Amundsen e Scott e sei lá mais quem atravessando o pólo norte de lá pra cá - só porque tinham uma biblioteca ruim em casa. Se tivessem as obras completas de Simenon não fariam isso. Acredite, uma simples coleção de DVDs teria evitado o afundamento trágico do Shackleton.

Oh, mas o cinema. Sim, o cinema. Cinco vezes em seis você sabe que vai sentar perto de alguém que fala alto. Na sexta vez é alguém que fede. Minha lembrança de ter ido ver “O Senhor dos Anéis I” é a de ter sentado do lado de um gordo de bermuda que fedia a pano molhado. Primeiro a minha namorada sentou do lado dele, depois pediu pra trocar sem explicar o motivo.

Meu ideal era arranjar uma namorada que gostasse de ficar em casa, mas eis a regra: mulheres bonitas gostam de sair, justamente porque são bonitas. Mulheres feias é que gostam de ficar em casa (justamente porque são feias). Talvez eu pudesse encontrar um meio-termo, uma mulher mais ou menos, que gostasse de ficar no jardim, sei lá eu. Ou, melhor ainda, uma mulher linda que se achasse horrorosa, que tivesse alguma espécie de trauma com relação à aparência. Eu nunca diria o quanto ela é linda. Não, não. Ela perguntaria se é bonita e eu esperaria cinco segundos, simulando constrangimento, antes de dizer: “Que é isso, até que você é bonita.” Dando um tapinha no ombro dela para animá-la. Há muitas mulheres assim, as mulheres lindas têm todo tipo de insegurança, vocês é que estragam tudo dizendo o tempo todo que elas são lindas.

***

Pessoas que dedicam blogs inteiros a sexo. Sexo é bom, ok, mas amendoim também é bom e eu não vejo blogs inteiros dedicados ao amendoim. “Ah, está comparando sexo com amendoim, é maluco”. Bom, amendoim é mais barato. Se você encontrar uma prostituta que cobre tão pouco quanto um saquinho de amendoim japonês Yoki, advirto-o que fuja, porque ela não só deve ser velha e feia como deve ter várias doenças impressionantes, incluindo dança de São Vito e radioatividade. “Se você faz essa comparação é porque não sabe” (atenção para o sotaque carioca, em que cada vogal é seguida pelas outras quatro – “e” se tornando “eaiou”, “a” se tornando “aeiou”, etc) “trepar” (uma palavra inventada por roteiristas de cinema nacional circa 1972).

Eu, não sei treaiuopaeiuor? Não, é você que não sabe comer amendoim. E quero ver você se divertir com a sua prostituta radioativa sentado no sofá enquanto vê “Notting Hill” do jeito que eu me divirto com um saquinho de amendoim sentado no sofá vendo “Notting Hill”. Assim que ela começar a se sacudir com os espasmos da epilepsia e o olho de vidro dela quicar na sua barriga você vai se arrepender de não ter gasto os seus R$3,10 num saquinho de amendoim, posso garantir. (Pessoalmente prefiro castanha de caju, mas estou saindo um pouco do assunto.)

Pode ser o melhor dos escritores, na hora de escrever sobre sexo escreve mal. John Updike, por exemplo; apesar de alguns livros ruins é um escritor muito bom, cuja habilidade foi elogiada por Nabokov. Mas, mas, mas. Estou vendo aqui uma passagem dele que concorreu ao Bad Sex Awards, aquele prêmio criado pelo filho de Evelyn Waugh, o jornalista e polemista Auberon, para “chamar atenção para o uso grosseiro, vulgar e freqüentemente perfunctório de passagens redundantes de descrição sexual no romance moderno, e desencorajá-lo”.

Updike começa falando muito bem sobre “seis ou oito corvos” que batem contra os galhos de um carvalho muito alto, o que faz com que o personagem, deitado na grama com uma mulher, sinta o coração acelerar. Achei esse trecho realmente bonito. Mas daí o personagem olha para baixo, e Updike esculhamba tudo. É impossível, digo-vos, escrever uma frase não-ridícula com as palavras “o meu pau” no meio – idem para “o pau dele”, claro, ou qualquer, aaagh, ugh, “pau” - mesmo sem os adjetivos “túrgido” ou “impávido” acompanhando. Quando for rico, oferecerei um milhão de reais para quem conseguir fazer algo do tipo sem me fazer soar o alarme (túrgido, túrgido) da vulgaridade.

E o ganhador do prêmio no ano passado foi Tom Wolfe, com um trecho em que, aparentemente, os dedos de um sujeito chamado Hoyt foram parar debaixo do elástico da calcinha de uma mulher que eu não sei o nome, “geme geme geme geme geme”, escreveu Tom Wolfe cinco vezes, “fez Hoyt enquanto ele deslizava deslizava deslizava deslizava”. Note que Wolfe só repetiu “deslizava” quatro vezes. Ah, nada é por acaso na arte da prosódia.

Existe uma proibição, sim, em relação a se falar sobre sexo, mas é uma proibição natural: para que ninguém falasse do assunto, Deus fez com que o sexo fosse ridículo.

***

No final da visita uma tia minha me segurou na mão e disse: “E você cuidado, recebi uma inspiração, você é muito invejado...”

Que superstição, a inveja. Essa é a única religião das mulheres. Elas podem se dizer protestantes, judias, shintoístas, o que seja; tudo isso é superfície. Na verdade só acreditam em Inveja. Quando me dizem que a samambaia secou porque a vizinha do 171 olhou com inveja o arranjo floral, e eu digo que inveja é superstição, elas me olham com raiva de pequenas torquemadas.

E talvez um pouquinho de pena. Não fui iniciado nos Mistérios do Olho Gordo... Como um adulto que não vê fadinhas, não vejo inveja em parte alguma. Entro numa casa em que não vejo absolutamente nada para ser invejado, e a dona da casa pendurou alguma coisa, em algum lugar, “contra a inveja”. Estou falando sério, é a religião das mulheres...

(Publicado originalmente na edição 36, de dezembro de 2005, da revista Semana 3)

Alexandre Soares Silva, novembro de 2005

O mito brega da oposição



Quando Lula virou presidente (ah, não se pode dizer “virou”, como se ele fosse um lobisomem; em colunas políticas só se pode dizer “foi eleito”, eu sei), no primeiro momento fiquei contente porque, pela primeira vez na minha vida, eu ia ser realmente oposição. De verdade! Como toda aquela gente que eu passei a adolescência admirando: Paulo Francis, Millôr Fernandes, sei lá eu mais quem.

Me lembro que na época, na semana mesmo da eleição, estava discutindo o assunto por e-mail com um bando de petistas. Na noite da eleição deixei uma mensagem que para mim parecia de triunfo, meu, para eles: “Parabéns: vocês agora são situacionistas.”

Fui dormir, aquela noite, sendo oposição – e todos aqueles cretinos, comemorando com buzinas na Avenida Paulista, foram dormir situacionistas, governistas, e mais uma série de coisas inacreditavelmente vergonhosas. (Em política, que o nosso lado sempre perca: é o que eu desejo de melhor para a dignidade de qualquer pessoa.)

Mas ao acordar no dia seguinte, a primeira coisa que pensei foi: “Ok, sou oposição – vamos pegar o jornal e ver o que está acontecendo”. E o pensamento de que agora eu era obrigado a prestar atenção no que um lorpa badameco como Lula dizia ou fazia me deprimiu tanto que as unhas se despregaram dos meus pés de tanto desgosto, e meus cabelos ficaram brancos do nojo de semelhante tarefa.

Recusei. Não fui oposição, nem mesmo no meu cantinho. Na verdade, nesses três anos mal falei do Lula. Talvez, quando alguém me contava uma ou outra coisa que o Lula fez, eu tenha rido pelo nariz; mas tenho certeza que foi só isso. Mal tomei conhecimento da existência de Lula, e me orgulho de ter feito isso. A beleza de ser oposição é um mito romântico e brega abraçado por jornalistas – pessoas que muitas vezes, para qualquer outro assunto, são sensatamente cínicas, mas no fim acham romântico desperdiçar o próprio talento prestando atenção no deputado tal, no senador não sei das quantas, para poder falar mal deles numa coluna.

Claro, ainda piores que os jornalistas que acreditam no mito romântico e brega da Oposição são os jornalistas que não acreditam nele. Há quem não dê a mínima. Me lembro muito bem, e espero que todo mundo se lembre, como praticamente todos os jornalistas brasileiros escreveram coisas de uma subserviência patética nos primeiros meses do governo Lula (e nos meses anteriores também). O que eles disseram de Lula, em público, eu teria vergonha de dizer de uma mulher bonita, sozinho com ela, no escuro.

Essas mesmas pessoas passaram décadas cultivando o mito romântico do jornalista de oposição, ouvindo Elis Regina, cheirando cocaí-na e chorando. No primeiro governo feito de gente mais ou menos como eles, abaixaram as calças. (É difícil evitar essa imagem sexual aqui. Eles mesmo usavam imagens sexuais contra quem de alguma forma se aliou aos militares durante a ditadura. “Lambedor de botas” era o que diziam de mais leve.)

Os nomes dessas pessoas estão guardados para sempre, onde quer que jornais sejam guardados. Seus netos, bisnetos e trisnetos verão o papel bonito que fizeram. É como ter um trisavô que ficou conhecido por passar quatro anos falando bem do Excelentíssimo Sr. Presidente Venceslau Brás. Ok, não é a mesma coisa que ter apoiado Hitler ou Mussolini, concedo; mas mesmo assim não enche ninguém de orgulho ao olhar a foto do trisavô bigodudo.

Da minha parte achei bom que Diogo Mainardi tivesse se ocupado em ser, quase sozinho durante um bom tempo (blogs não contam), a oposição a Lula; ele fez o que fez muito bem, e embora eu tivesse preferido que ele passasse esse tempo escrevendo livros, o fato é que ele me livrou de ter que fazer a mesma coisa aqui no meu canto. Desse modo pude passar três anos lendo romances do século XIX, e ouvindo Beethoven enquanto comia bala de goma. Vi várias vezes os seis filmes da série “Thin Man”, com William Powell e Myrna Loy. Escrevi sobre, sei lá eu, Lee Van Cleef, Philip Seymour Hoffman, os livros de James Bond. Sei que o governo do PT esteve envolvido numa coisa chamada Escândalo do Mensalão, mas não quero saber dos detalhes.

Recusei a tentação de me rebaixar ao nível da mera oposição. A desgraça da oposição é ter que prestar atenção naquilo a que se opõe. E é isso que todos os governos querem, mais do que bajulação ou adesão irrestrita: que prestem atenção neles. Sei que há pessoas que acreditam que todos os governantes querem que não prestemos atenção neles, para que eles possam fazer o que quiserem. Mas essa teoria é bobagem, porque não leva em conta a vaidade humana.

Se me perguntarem, a melhor e mais dolorida maneira de insultar os políticos seria inverter a ordem dos cadernos nos jornais, e pôr tudo como sempre deveria ter sido: cultura primeiro, esporte depois; seguido de noticiazinhas sobre árvores que caíram na chuva, mulheres mortas por ex-maridos, e os invariáveis escoteiros perdidos na floresta. E só depois política.

Acham que políticos se importam em serem atacados em colunas na página dois? Claro que não – ninguém se importaria. Eu sei que eu adoraria. Não, não – jogue todos para uma notinha no último caderno. Isso sim seria subversivo.

(Publicado originalmente na edição 35, de novembro de 2005, da revista Semana 3)

Alexandre Soares entrevista Paulo Francis, outubro de 2005

Paulo Francis no paraíso



Quando a empregada no portão me disse que Paulo Francis estava nos fundos, “jogando tênis com convidados”, imaginei que isso era força de expressão e que eu o encontraria sentado na sombra, lendo Isaac Deutscher, digamos (um dos favoritos de Francis, em vida biógrafo de Stalin e Trotsky e agora biógrafo de santos e teólogos) enquanto seus amigos jogavam. Afinal todos conhecem bem a aversão de Francis a esportes. “Minha tolerância é de cinco minutos”, ele havia escrito em vida. Mas contornei a casa de tijolos e, para minha surpresa, lá estava Francis na quadra de saibro, correndo de um lado para o outro e batendo na bola com força um pouco excessiva. A bola ou acertava no rosto de Greta Garbo ou nos testículos do ator John Gilbert. Ambos pareciam furiosos.

“O segredo está no quadril”, Francis disse quando o jogo acabou, se aproximando de mim e jogando a raquete com descuido na cadeira.“Você encaixa o quadril como se estivesse dando uma bimbada. Erroll Flynn me ensinou as manhas todas”. Eu disse que não sabia que ele era praticante de esportes, “além de abrir e fechar porta de táxi”. Sem reconhecer a citação, ele respondeu: “O médico me recomendou esporte pra emagrecer. Você não pode morrer no Paraíso, mas pode ficar gordo como Giuseppe Taddei em Falstaff. ” E em seguida Francis, abrindo os braços dramaticamente, começou a cantar uma ária dessa ópera de Verdi com voz surpreendentemente potente (“Tutte le donne ammutinate insieme/ si dannano per me...”), me embaraçando um pouco. Nos sentamos à sombra, debaixo de um guarda-sol.

Francis vê o volume do gravador dentro de uma sacola e pergunta desconfiado: “É goiabada Cascão? Brasileiro vive me trazendo goiabada Cascão. Não agüento mais goiabada Cascão”. Eu o tranqüilizo mostrando o gravador, e pergunto se há muitos brasileiros no Paraíso. “Não, poucos. Mas todos que vêm me trazem goiabada Cascão. Porque eu disse uma vez que a única coisa da Terra da qual eu sentia falta era goiabada Cascão. Mas eles exageram. Não tenho mais espaço pra goiabada Cascão”. Espero pacientemente que ele pare de falar em goiabada Cascão e volto a perguntar sobre brasileiros no Paraíso. Eles causam problema? São bem-vistos?

“No que me concerne, nucopardoca. Outro dia desses vi um grupo brasileiro pisando forte e começaram os comentários que nos tornaram os japoneses do Paraíso (sem a educação formal, bem entendido): ‘É só isso que é o Céu?’ (imitando brasileiros idiotas). Sim, porque quem já viu a favela Copacabana não pode sequer tolerar o primitivismo da arquitetura do Paraíso. Ignorados na lição de arquitetura, passaram à musical, entoando ‘Cidade Maravilhosa’. Um anjo pediu que fechassem a butuca a fim de não matar de susto os pombos e levar ao suicídio os espíritos provenientes de países civilizados. Saíram batendo o pé e murmurando: ‘Anjos fascistas!’. Há também aquele caso proverbial do mineirinho que chegou no Céu e pediu pra falar com ‘o Seu Jesus’, e de certa socialite paulista que, barrada no Céu, ameaçou reclamar ao marido, que dizia aos berros ser ‘presidente das Casas Bahia’. De brasileiro quero distância, e nem do espelho chego muito perto”.

Fui à entrevista preparado para ser agressivo. Eu havia me convencido de que qualquer coisa era melhor do que mostrar a Francis o quanto eu o admirava. Era melhor ser insolente, cínico; de modo que ri e lhe dei os parabéns por ter deixado de pintar o cabelo de acaju. Francis resmungou alto, me olhou com desprezo e respondeu: “Não era acaju, era burgundi. Waaaal, se eu tenho que dizer a diferença...”.

Não digo, mas Francis está bem, aparentando quarenta anos ou menos, corado e em forma. Sei por conhecidos que está casado com a escritora americana Mary McCarthy (que estava na quadra jogando ao seu lado quando cheguei), e que vivem juntos nessa grande casa de tijolos numa das mais bonitas cidades do Paraíso. O rumor é que brigam muito, bebem muito, escrevem muito e viajam muito. “Todos os lugares da Terra são detestáveis, pensando bem”, Francis diz. “São bons se você está bem. E eu nunca estava bem, logo, ergo, etc. Mas aqui, você respira o ar e parece que é champanhe”. Pergunto se é verdade que ele e Mary só estão esperando que Jaguar morra para adotá-lo como filho retardado, “mongolóide”, digo, e Francis dá uma gargalhada surpreendentemente contagiosa. Pela primeira vez, parece olhar para mim de fato.

“Ah, você é um desses?”, diz, estendendo a mão para perto do meu rosto. Antes que eu pergunte “desses o quê?”, Francis diz: “Está vendo o fiozinho azul claro? Sai da tua testa e vem pra minha? Quase não dá pra ver, olha bem”. Com dificuldade percebo um fiozinho, mais fino que uma linha de costura, preso nos dedos gorduchos de Paulo Francis. Ele explica:

“Não havendo nascimento no Paraíso, não há pais nem filhos, não há linhagens dinásticas. O modo com que a aristocracia se transmite é puramente intelectual, espiritual. Os autores que você leu são aqui como os seus antepassados. Se você leu Shakespeare a ponto de ser modificado internamente pela leitura, a ponto de assimilar a leitura, organicamente, Shakespeare é considerado seu antepassado, você pertence à mesma família que ele. Um aristocrata, aqui, é alguém que tem uma longa e antiga ‘família’, com a qual ele é ligado por um fio azul como este. Por este fio aqui eu sei que você me leu, que eu influenciei você de alguma forma”.

É verdade, mas sinto vergonha de confessar. Ele solta o fio e bebe suco de maçã numa caixinha, me oferecendo outra, que eu aceito. A vergonha também me impede de perguntar se ele sabe que há muitas pessoas influenciadas por ele na Terra, a maioria das quais escritores de Internet, blogueiros. Pessoas que cresceram lendo as colunas dele nos jornais, que leram a respeito de coisas tão díspares quanto Auden ou Wagner ou filmes de Fritz Lang pela primeira vez nas colunas dele. E que se sentem gratas a ele, de alguma forma.

Ao invés disso, pergunto se ele sabe do último escândalo do governo. Francis suspira e diz: “Não, qual a suburbanada agora?” Conto para ele do Mensalão, José Dirceu, Genoíno, Lula. (Digo essas coisas mas o fio azul que sai da minha testa e vai para a dele está me incomodando, apesar de quase invisível. Imagino que está me fazendo cosquinha.)

Mas Francis não parece interessado. Diz: “Gastei a vida com essas bobagens, tarde demais percebi que devia ter me dedicado exclusivamente a Matisse, Wagner. Prefiro inclusive falar de sorvete de fruta. Existem duas mil variedades de sorvete de fruta aqui. Você gosta de sorvete de fruta? Uma coisa que vou dizer, no entanto, é que a estrutura do PT, as caras lombrosianas dessas pessoas e o comportamento, digamos, silvícola, aborígene, lembram tremendamente o Inferno. Mas a eternidade é muito curta pra gastar com o PT”.

Eu: “Você culpa Joel Rennó, então presidente da Petrobrás, que entrou com um processo de US$100 milhões contra você por difamação, pela sua morte? Quando você morreu, todos diziam que essa era a causa”.

Francis: “Pfui. Olha aqui, Samuel Johnson já notava, a propósito de Milton e um certo Salmasius, que sempre se diz que polemistas foram mortos por suas últimas disputas. Rennó é uma besta, e não quero que pensem que tamanha besta teria uma importância dessas na minha vida, ou na minha morte. Me tirou o sono durante uma semana, no máximo”.

Eu: “Como é a morte, o processo todo? Sentiu medo, antes, depois?”

Francis: “Medo algum. Sempre me imaginei um covarde físico (e, daí, alguns espetáculos de machice excessiva no meu passado. Um covarde humilhado é uma fera) e um valente moral. Sou forçado a uma revisão, e me surpreendo de não tê-la feito antes. Afinal, sempre que me vi frente a frente à dor, não reagi mal. Morrer foi ‘um pedaço de bolo’, na tradução sublime dos legendadores de cinema. Quando morri vim ver Capitão Blood no Paraíso, concluindo corretamente que nada poderia fazer, considerando ridículas cenas de cemitério. Três primas minhas inclusive choravam sempre abraçadas pelas cabeças, em voz alta, em movimento permanente, o que me lembrava baile de carnaval. Conhecidos distantes meus soltando ranho pelo nariz, pela boca”.

Eu: “Você fez muitos amigos por aqui? Aqueles jogando tênis agora pouco, eram Greta Garbo, John Gilbert?”.

Francis: “Sim, mas não são tantos os amigos reais. Afinal, as coisas não mudaram muito. No Rio eu via com freqüência umas vinte pessoas (no máximo: estou incluindo as obrigatórias). Aqui, a mesma coisa. A diferença é que no Rio, se você quiser, faz mil amigos. No Paraíso, não. Os grupos são pequenos e se cortam mutuamente. Moro duas casas abaixo de um cara que já encontrei em várias reuniões. Nunca ocorreu a ele ou a mim tomarmos um drinque na casa um do outro. Ninguém toca a campainha da tua casa sem aviso prévio e muito claro. Ninguém puxa conversa com você se você está lendo. Ninguém lê o que está em cima da tua mesa. Prefiro assim. Não é a toa que Garbo mora aqui”.

Eu: “Se há poucos brasileiros aqui, presumo que estão no Inferno. A maior parte das pessoas no Céu vem de qual nacionalidade?”.

Francis: “Bom, Sartre, que não veio exatamente pro Paraíso, digamos assim, mas para um lugar antípoda, escreveu que em nenhum outro lugar do universo se vê tanto a simultaneidade da vida das pessoas quanto aqui. True, true. Olhe à sua volta e não vai ver duas pessoas da mesma nacionalidade. Um dos problemas de se viver no além é a perda da identidade nacional e do status em que temos no nosso mundo, seja este qual for. Do status sinto uma certa falta. Eu já havia me habituado a encontrar sempre mesa nos restaurantes, mesmo quando tinha vinte pessoas esperando a vez. Aqui, os anjos passam antes. É cruel. Mas identidade nacional? Aqui ninguém tem. Meus quatro amigos aqui nessa rua eram em vida todos de diferentes países. Dou-llhes dicas sobre o que devem fazer para se divertir no Paraíso. Gostaria de aconselhar a um deles, o mais simpático, a não usar certas camisas e abolir certas expressões como ‘lúdico’ ou ‘agregar valores’, que aqui caem mal. Mas ele é do Texas e John Wayne sempre me meteu um certo medo”.

Uma mulher usando roupa branca de tênis sai da casa e vem na nossa direção. Percebo que é Mary McCarthy, jovem e muito bonita, os braços queimados de sol, dourados, contrastando com a roupa, o cabelo castanho preso em duas tranças. Ela pára com a mão no ombro de Francis e pergunta se vou ficar para o almoço. Francis diz “Claro que fica”. Explico que não posso, que ainda estou vivo, que estou só sonhando – e em poucos minutos vou ter que acordar. Francis diz: “Ah, é verdade. Sempre me esqueço”, e continuamos com a entrevista.

Francis: “Continuando no pessoal, há as livrarias. Sempre que entro numa grande livraria aqui entendo porque eu nunca poderia viver de novo nesse mundo jeca de vocês. Quero saber de tudo que estão escrevendo, mesmo que noventa por cento não me interessem da superpornografia à lógica matemática. A disponibilidade cultural do Paraíso chega a ser indecente. Pense no que você quer. Aqui tem em triplo. Bernard Shaw escreveu quarenta e seis peças desde que morreu em 1950. Quarenta e seis. Isso fora volumes e volumes de cartas, romances e crítica de música. Não há equivalente na Terra, não há equivalente possível, para a produtividade do espírito humano desgarrado do corpo. A pior das músicas que Mozart compôs depois de morto é melhor do que a Sinfonia Júpiter”.

Eu: “E a sua própria produtividade? Tem escrito peças, romances?”.

Francis: “Peças, romances, you name it. Terminei a trilogia dos romances ‘Cabeça’ com ‘Cabeça de Picareta’, no qual o protagonista Hugo Mann morre e é encarregado de seqüestrar Trotsky do Inferno. Sabotado pelas próprias dúvidas, falha, é claro. O livro foi recebido com entusiasmo ‘contido’, digamos assim, mas Philip Rahv escreveu um longo ensaio sobre ele na Partisan Review daqui o colocando nos cornos na lua e, dizem, Edmund Wilson leu e gostou, comparando (favoravelmente) aos romances post-mortem de Arthur Koestler. No momento estou terminando uma peça sobre a morte de Freud, na qual o grande ator francês Gérard Philippe vai interpretar o cachorro salsicha de Jung. Fora isso, escrevo uma coluna mensal para um jornal daqui, na qual despejo minha acídia que, mesmo aqui, perdura. Este mês xinguei Santo Estevão de deficiente mental. Fico feliz de dizer que ele me deu uma botinada”.

Nesse ponto Mary McCarthy, Garbo e Gilbert aparecem no terraço – Gilbert plantando bananeira, balançando no galho dum pessegueiro etc., enquanto Garbo, de olho roxo das boladas que levou de Francis, ri do amante. Percebo que o almoço está pronto e me levanto. Francis se levanta também – minha cabeça dá no ombro dele. Agradeço pela entrevista.

“De nada, volte sempre. Brasileiro agradável é mais raro do que espanhol humilde”. Francis ri da própria piada, eu rio também.

Estou quase saindo pelo portão quando ouço sua voz vindo de longe:

“Ah, ô, diz também que não desdigo nada do que disse daquele Joel Rennó. Estou vendo tudo que ele faz daqui. Ok?”

“Ok!”

“Sei dos podres todos. Ora, outro dia ele tirou caquinha do nariz e comeu que eu vi. ‘Limpou o salão’, como se dizia na minha infância. Foi disgusting. E foi ele que matou Marilyn Monroe. Publica isso que eu quero ver”.

“Publico!”, eu grito por cima da sebe.

“E tem mais, Lula matou Jimmy Hoffa”. Nesse ponto a voz já vem tão distante que fico em dúvida de que ouvi isso mesmo. Lula matou Jimmy Hoffa? Estou na rua de grama, sinto que estou acordando. Mas Francis continua: “E enterrou em Osasco. Como você acha que Lula perdeu o dedo? Cavem bem fundo no shop-ping Osasco, bem debaixo do Habib’s, abram a mandíbula de Jimmy Hoffa e vão encontrar um dedo mindinho lá”.

E depois ouço uma gargalhada, feita só de chiados e sons nasais, que assustam as borboletas da sebe e as fazem pular, uma a uma, para o céu inacreditavelmente azul.

* Alexandre Soares Silva, 36, é escritor e tradutor. Autor de “A Coisa Não-Deus” (Beca, 2000), “Morte e Vida Celestina” (Candide, 2004), além de dois livros de aventuras para adolescentes, “A Origem dos Irmãos Coyote” e “Na Torre do Tombo” (Global). Também participou das coletâneas “Wunderblogs.com” (Barracuda, 2004) e “A Visita” (Barracuda, no prelo).

(Publicado originalmente na edição 34, de outubro de 2005, da revista Semana 3)

Alexandre Soares Silva, outubro de 2005

As imbecilidades de Byron e Shakespeare



Há quem recomende se livrar do apego para perder qualquer espécie de medo, mas eu não sei que tipo de amor é esse que alguém pode ter sem apego. Como é que alguém pode amar a mulher sem apego? Me parece um amor fraquinho. Um amor vago pela humanidade, uma predisposição geral para gostar das pessoas. E isso é bom, mas isso não é jeito de gostar da própria mulher, dos próprios filhos, dos próprios cachorros. Se isso é o budismo, o budismo só serve para gostar de quem a gente vê na rua ou no jornal.

Sua canalha, me amando desapegadamente. Budista sem-vergonha. Desapego é motivo de divórcio. Se eu perceber com o canto do olho que você está me amando desapegadamente, dearest, enquanto vemos um filme tarde da noite, te dou um golpe de karatê na traquéia. Lendo livros sobre budismo não consigo deixar de sentir o horror do desapego, do desapego alheio. Do desapego meu também: é triste se desapegar. Você sente que está fazendo uma coisa errada, deixando ir embora o que você não devia deixar ir embora nunca. Ser cristão, ser judeu, ser ocidental, é amar apegadamente – tão apegadamente quanto possa, e se agarrar na coisa e lutar por ela.

Se você perder essa coisa, você chora. Você berra, faz cena. Ou você se agüenta, é uma opção também. Perder e não ligar é coisa de budista, e tenho horror de budista, que ama a própria mãe com a mesma tranqüilidade com que ama as vítimas de um furacão ou o porteiro do prédio. Podem dizer o que quiser, e em sânscrito, mas isso não é modo de amar a própria mãe. O budismo só serve para gerar uma certa benevolência com estranhos na rua. Da porta de casa para fora, seja budista, eu até recomendo – lovely stuff, deixa um sorriso sereno no rosto. Mas em família, ou se tratando do cachorro da família, ou da tartaruga, ou do hamster, se apegue aí, como um homem.

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Tenho medo de morrer engasgado no meio da noite. Tenho medo que os meus filhos sejam idiotas. Tenho medo de morrer e desaparecer, tenho medo de morrer e ir para o inferno. Tenho medo de imagens de explosões solares, por algum motivo. Tenho medo de fotos de fantasmas evidentemente falsificadas de 1930. Tenho medo de perder o nariz. Tenho medo de acordar no meio da noite com a frase mais perfeita na mente e não anotar por preguiça, e depois esquecer tudo. Tenho medo de aranhas e não tenho medo de cobras, mas tenho medo de ratos. Tenho mais medo de um rato morto e podre, de barriga inchada, do que de um rato vivo. Tenho medo de pobre e de pobreza. Tenho medo de trabalho. “Não tenho medo de trabalho”, diz muita gente. Eu tenho. Tenho medo do centro da cidade e tenho medo de ter que viver normalmente, fazendo coisas práticas, entrando em filas. Não tenho medo de briga, eu sempre quis brigar na rua. Tenho medo de me ver refletido numa vitrine e perceber de repente que estou muito gordo. Tenho medo da manhã. Tenho medo do momento da manhã em que de um minuto para o outro você começa a ouvir muitos carros na rua.

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Chesterton, no livro “Heretics” (1908):

“...aquele miserável medo de ser sentimental, que é o mais mesquinho de todos os medos modernos – mais mesquinho até do que o medo que causa a higiene. O humor robusto e contagiante sempre veio de homens que eram capazes não só de sentimentalismo, mas de um sentimentalismo bem tolo. Nunca houve humor mais robusto ou contagiante que o do sentimental Steele ou o do sentimental Sterne ou do sentimental Dickens. Essas criaturas que choravam como mulheres eram as mesmas que riam como homens. É verdade que o humor de Micawber é boa literatura e o pathos da pequena Nell é má literatura. Mas o tipo de homem que teve a coragem de escrever tão mal em um caso é o mesmo tipo que teve a coragem de escrever tão bem no outro. A mesma inconsciência, a mesma inocência extremada, a mesma gigantesca escala de ação que trouxe ao Napoleão da Comédia sua Jena também lhe trouxe sua Moscou. E aqui vemos com clareza a frágil e frígida limitação dos nossos modernos escritores elegantes. Eles se esforçam violentamente, heroicamente, quase pateticamente, mas na verdade não conseguem escrever mal. Há momentos em que quase pensamos que eles conseguiram, mas nossa esperança desaparece quando comparamos suas falhazinhas com as enormes imbecilidades de Byron ou Shakespeare.”

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O amor (como Malcolm MacDowell) aparece nos lugares mais estranhos. Uma vez vi um filme pornô em que uma mulher fazia sexo com trezentos homens em uma noite. Fizeram duas filas de homens pelados de bundas notavelmente murchas, com uma fluffer no fim de cada fila (uma fluffer é uma espécie de cheerleader do pinto). Depois iam, esses homens, de cinco em cinco, para uma mesa baixa em que a mulher estava deitada de barriga pra cima. Cercavam a mesa e faziam sexo com a mulher com aquele jeito não propriamente desumano, mas inumano, que as pessoas nos filmes pornô têm. Mas o que eu queria dizer é isso – que a certa altura a mulher perguntou para o assistente quantos já tinham ido, e ele disse, sei lá, cento e cinqüenta; e ela sorriu e gritou, “I’m a slut! I’m such a slut!”, toda contente. E imediatamente um negão, careca, fortão, de óculos de aro de tartaruga, que estava entre as pernas dela, disse num tom inacreditavelmente terno: “Oh no honey, you are not”. E dava pra ouvir na voz do negão uma doçura de namorado mesmo, um cuidado de pai falando com a filha de três anos que caiu do triciclo, ou consolando a filha de onze que se acha burra na escola. O que é claro que ela era – a slut, that is – e pode ser que ele tenha estragado um pouco a diversão da mulher por dizer isso, mas eu não me esqueço do tom da voz dele até hoje – que era o do amor sob sua forma mais gentil, que é a ternura, a ternura gratuita de estranho para estranho.

(Publicado originalmente na edição 34, de outubro de 2005, da revista Semana 3)

Alexandre Soares Silva, ago/set de 2005

Moda é a mãe



Estou lendo aqui que o conservadorismo “está na moda”. Na minha experiência, quando se diz que algo está na moda é para acabar com esse algo; para meter vergonha nele, fazer com que se ache uma maria-vai-com-as-outras. Você vai andando na rua, alguém aponta a sua calça e diz: “Ah, usar calça agora está na moda, né? A boneca faz de tudo pra estar na moda, né?”. E você continua a andar, subitamente envergonhado de estar usando calças.

E se dizem que está na moda ser conservador é pelo mesmo motivo. Mas ser conservador não pode ser uma moda, porque ser conservador é o normal do espírito humano.

Até mesmo por definição. Um conservador olha para os milênios de história sentindo respeito pelas instituições que funcionaram. Se reconhece que algumas instituições precisavam acabar, faz isso com alguma dificuldade. Sente sempre que é preciso oferecer uma oposição às mudanças bruscas, e que no conflito entre uma instituição de séculos e um teórico radical que quer acabar com essa instituição, o ônus da prova está com o teórico radical. (É a primeira vez que digo “ônus da prova” sem rir. Mas não é porque estou ficando adulto, é porque estou com dor de dente desde sábado. Ah, esquece.)

Não se trata de se opor ao teórico radical sempre: uma vez em cada cem ele está certo e a instituição deve acabar. Trata-se de impor alguma desconfiança ao teórico - uma desconfiança tanto instintiva quanto racional. O anticonservador, por oposição, parece sempre não ter desconfiança nenhuma: se aparece alguém propondo substituir o casamento pelo amor livre, pelo casamento aberto ou pelo joguinho da garrafa, agora tornado oficial e supervisionado pelo Estado, o anticonservador fica entusiasmado, grita um slogan embaraçoso e manda ao Estado que encomende as garrafas.

Essa desconfiança é instintiva e racional. É instintiva porque o conservadorismo, como disse o filósofo Michael Oakeshott, é um tipo de temperamento, uma disposição da alma; e é racional porque é próprio das pessoas racionais desconfiarem um pouquinho da razão. Se alguém me apresenta um plano para abolir a amizade, digamos, e substituí-la por Cupons Interrelacionais Distribuídos pelo Estado (CIDE), por mais que o plano pareça racional no papel e momentaneamente me convença de que vai acabar mesmo com o lado ruim de todas as amizades, como a não-devolução de livros emprestados, a razão me manda desconfiar que a minha capacidade racional, junto com a capacidade racional do proponente dos CIDEs, não é capaz de prever todas os problemas desse plano e que é melhor ficar com a amizade mesmo, porque afinal ela já foi testada durante alguns milhares de anos e, bem ou mal, funciona. Mas anticonservadores, lamento dizê-lo, parecem não desconfiar da razão nunca. (Podem desconfiar de um plano específico, que examinam muitas vezes com bastante cuidado. Mas se a própria razão lhes diz que o plano é bom, parecem não desconfiar da própria razão nunca.)

Mesmo que um plano pareça completamente racional, é preciso desconfiar dele; sobretudo se ele parece completamente racional. Os últimos três séculos foram cheios de planos muito racionais para acabar com coisas que vinham funcionando bem: o casamento tradicional, o romance tradicional, a música tradicional, a arquitetura tradicional. “Funcionando bem? Mas e a Crise do Casamento Tradicional?”. A Crise do Casamento Tradicional, na minha opinião, assim em maiúsculas, foi exagerada em filmes e livros exatamente por pessoas interessadas em acabar com o casamento tradicional e substituí-lo pelo último plano da moda. Enquanto o casamento “acabava” (pfui), milhões de casais casados continuavam juntos, tendo o mesmo grau de felicidade/infelicidade que caracteriza a vida humana em qualquer lugar, em qualquer época. Mesma coisa com as cidades, que supostamente estavam “crescendo caoticamente” e precisavam, claro, da organização de um planificador estatal - que se divertiu durante algumas décadas desenhando cidades em formatos geométricos, que iam de quadradinhos a estrelas-do-mar. Vamos fazer todos os padeiros viverem num bairro só! Vamos criar um bairro só para colecionadores de selos! Assim eles vivem juntos e se reúnem nesta Praça Central Para Troca de Selos e Similares! Ah, que diversão.

Só a arrogância das esquerdas pode achar que essa desconfiança em relação às mudanças radicais é “uma moda”. Volto a dizer que é o natural do espírito humano; moda foi justamente a confiança excessiva na razão, que começou, falando grosseiramente, com o Iluminismo; e o final de uma moda não é uma moda. Sempre vamos ter radicais propondo vários tipos de inovações sociais malucas – como, sei lá, o fim da propriedade privada, o casamento aberto, a esmola compulsória ou a regulamentação estatal do namorico de praia. Essas inovações sociais malucas vão ser aceitas durante uns vinte, trinta anos; pessoas vão fazer filmes mostrando como essas inovações sociais malucas são bonitas, e como as tradições que elas substituíram eram asfixiantes e vis; e alguns desses filmes vão ser até simpáticos, com uma trilha sonora bacaninha. Mas quando essas inovações sociais malucas finalmente acabarem, isso não vai ser uma moda; vai ser o fim de uma moda.

Da minha parte, não consigo deixar de achar que a visão de mundo tradicional – e se você não sabe o que é a visão de mundo tradicional, pense em tudo aquilo que um intelectual de esquerda odeia – nascia da experiência humana, e que quando queremos fugir disso acabamos adotando vários tipos de práticas bizarras e patetas. Abandone a visão tradicional do mundo – mais especificamente, abandone o cristianismo – e tudo quanto é tipo de aberração vai surgir, com um intelectual radical de boina a defendendo todo contente.

(Publicado originalmente na edição 33, de ago/set de 2005, da revista Semana 3)

Alexandre Soares Silva, julho de 2005

Em defesa da intolerância



Uma boa regra na vida, que me ocorreu outro dia – enquanto eu subia uma escada comendo lentamente uma banana, por sinal – é não acusar quem tem uma opinião diferente da sua de sofrer de um dos três males, Canalhice, Desequilíbrio Mental ou Idiotice. Sim, uma boa regra; e fiquei tão contente com ela que quis imediatamente voltar pra casa e escrever uma coluna reconhecendo que eu sei que há esquerdistas inteligentes, ateus emocionalmente maduros e comunistas não completamente canalhas. Minha recém-descoberta tolerância me embriagou um pouquinho – e, enquanto eu andava depressa pela avenida, senti uma vaga vontade de dançar a Dança da Tolerância, subindo em barraquinhas de camelôs, sapateando e cantando músicas de Gershwin.

Felizmente havia trânsito no caminho pra casa; digo “felizmente” porque o meu entusiasmo teve tempo de ir embora e, quando cheguei na frente do computador, acabei escrevendo um texto agradavelmente intolerante e reacionário, dizendo que cariocas não são seres humanos porque não usam camisa. Assim acabei me poupando de passar um grande vexame, que é o de exibir a própria tolerância como uma nova-rica esfregando um anel de diamante na cara de uma manicure. É preciso escondermos um pouco a nossa tolerância, e nos fingirmos um pouco de monstros – por elegância, apenas. E também é preciso lembrar que a tolerância é agradável e sábia, mas estilisticamente monótona.

Posso perdoar muita coisa, mas não que me tolerem. Se alguém me tolerar, deve pelo menos fazer muita força para esconder isso. O sorriso da tolerância alheia seria motivo para duelo, se ainda vivêssemos num mundo tão civilizado que admitisse duelos. Posso muito bem imaginar um aristocrata francês pré-Revolução jogando um copo de vinho no rosto de seu interlocutor, e explicando depois – “Canalha! Tolerou-me!...”.

Me deixem dizer com mais clareza o que defendo: tolerância, sim – dãã – mas uma tolerância escondida, uma tolerância subreptícia. O contato prolongado na Internet com vários defensores nominais da tolerância me deixou uma má impressão da própria palavra. Será preciso muita inteligência para perceber que os defensores excessivamente enfáticos de qualquer virtude são sempre criaturas suspeitas? Quando você vê alguém defendendo a tolerância, não imagina sempre que, quando vier a Revolução, vai ter que se esconder dele? E, principalmente – por que motivo a palavra Tolerância é sempre mencionada para calar a boca de alguém?

Como qualquer virtude, pratique, se der – mas, por favor, não faça estardalhaço. Pelo contrário – meu conselho, de graça para você, leitor gentil, leitor papalvo, leitor careca: se finja de intolerante, se finja de muito zangado com as idéias alheias. Xingue quem se opõe a você – não a sério, nunca a sério, mas xingue. Chute cadeiras, cuspa no chão, fique todo vermelho – embora mantendo interiormente uma secreta equanimidade. Isso não só é menos chato que um texto ostensivamente tolerante, é mais correto também, de um jeito moral: é como alguém que desse sempre esmola jurando que nunca dá esmola, que acha um absurdo.

Às vezes é inevitável sentirmos a tentação da tolerância ostensiva; principalmente quando encontramos manifestações de intolerância genuína, boçal. Mas essas vêm se tornando tão raras – a intolerância se envergonha tanto de si mesma, ultimamente, e se disfarça tanto de tolerância democrática e humanista e igualitária e blá blá blá – que quando encontramos alguém confessadamente intolerante deveríamos ficar pelo menos um pouco gratos pela honestidade dele. Mesmo assim, espiando certos debates em fóruns de discussão de gente de esquerda, por exemplo, e vendo como eles caracterizam qualquer conservador como alguém patologicamente indiferente aos sofrimentos dos pobres, ainda dá pra ficar um pouco chocado, e sair sem apreciar nem um pouco a honestidade de suas opiniões. Durante uns momentos chego a desejar que eles me estendessem a cortesia de achar que eu tenho sentimentos, sei lá, e que sinto pena, por exemplo, da florista cega em “Luzes da Ribalta” (embora, para dizer a verdade, não muita, e nem sempre). E sinto vontade também de nunca cometer o mesmo erro grosseiro. De deixar sempre claro que eu sei que uma pessoa pode ser socialista e não ser burra, por exemplo. Escrever longos textos sobre isso. Vê-los me cumprimentando pela minha tolerância bacaninha.

Mas, sabe – não. Me recuso a ceder à tentação da tolerância ostensiva. E chego agora à minha Regra Número Um: em qualquer bom texto a tolerância deve estar implícita, e nunca expressa. Um bom texto, o texto que eu considero ideal e que eu sei que nem sempre consigo fazer, é aquele que, defendendo a posição A, deixa explícito que desprezamos muito a posição B, ao mesmo tempo em que deixa implícito que não temos desprezo nenhum pelos defensores da posição B. O desprezo (fingido ou verdadeiro) pela opinião contrária não é necessário, claro – mas acho recomendável, estilisticamente falando, porque o texto fica mais divertido de ler. Esse é um ponto tão óbvio que nem acho que seja necessário defendê-lo. Mas o desprezo não deve nunca ser estendido ao defensor da posição que fingimos que achamos desprezível: queremos ser divertidos, mas não queremos ser boçais. Essa tolerância deve ser sutil, vindo escondida no meio de uns sarcasmozinhos.

É um balanço difícil de ser alcançado, reconheço: entre tolerância real, e secreta, e intolerância fingida e ostensiva. Mas leitores inteligentes deveriam ser capazes de perceber isso, nossa secreta tolerância charmosa, em qualquer bom texto – sem que tenhamos que cometer a grosseria espantosa de afirmá-la com clareza.

(Publicado originalmente na edição 32, de julho de 2005, da revista Semana 3)

Alexandre Soares Silva, junho de 2005

Esquerda? Direita? Muito pelo contrário!



Quando vejo alguém dizer que não é de esquerda nem de direita, tenho a mesma reação de quando encontro um carioca: olho para os pés dele em pânico, com medo que comece a sambar.

Não é justo, porque há cariocas que não sambam, e que têm menos malemolência e ginga (Jesus, ginga) que eu – ou mesmo que Ingmar Bergman num dia especialmente reflexivo. Da mesma forma, há quem diga que não é de esquerda nem de direita por motivos perfeitamente válidos, e que não são cabeças-ocas de forma alguma. Mesmo assim, quando encontro cariocas ou pessoas que se orgulham de não ser nem de esquerda nem de direita, minha reação é a de dar três passos para trás com medo de me ver no meio de um pagode. “Não sou nem de direita nem de esquerda, muito pelo contrário! Epa!” – e imediatamente levanta os dois indicadores em direção ao teto e começa a sambar.

Algumas pessoas têm bons motivos para não ser nem de esquerda nem de direita. Entre eles o melhor motivo é o de não se interessar por essas coisas. Ser infantil demais, alienado demais; demasiadamente desinteressado nos possíveis modos de exploração de manganês e bauxita, e realmente não querendo saber como o Estado ou as empresas se arranjam para fazer essas coisas. Estão certos, eu queria ser assim. Até sou, um pouco. É melhor dedicar a vida à leitura dos contos de Tchecov, ou à tentativa de ouvir cada som jamais produzido pela garganta de Dietrich Fischer-Dieskau. Essas pessoas têm toda a minha simpatia.

Assim também os cristãos que usam o “meu Reino não é deste mundo” como justificativa para não se interessar pelo caderno de política dos jornais: estão certos, estão certos. Para um cristão, dar uma sugestão sobre como o Estado deve se organizar é mais ou menos como um hóspede sugerir onde um quadro deve ser pendurado na casa em que está de visita: ele pode dar a sugestão, é claro, quando perguntado; mas nunca com muito empenho ou ênfase. Em outras palavras, um cristão pode ser de esquerda ou de direita, mas nunca muito empolgadamente. As questões de sua própria casa, no céu ou no inferno, geralmente o ocupam muito mais.

Essas são as boas razões para não ser nem de esquerda nem de direita: infantilidade, alienação, desinteresse; ou a melhor de todas, que não entra em conflito com as outras: um interesse maior em Outras Coisas. Mas sou muito mesquinho e costumo atribuir motivos mais tolos. Por mais que a esquerda diga o contrário, é muito pequeno o número de pessoas genuinamente alienadas no mundo – em toda a minha vida, acho que só conheci duas ou três. A leitura de editoriais é uma tentação tão grande quanto o jogo, a bebida, as drogas, as prostitutas. Não, é muito pior: não conheço muita gente viciada em jogo, bebida, drogas ou prostitutas, mas quase todo mundo que eu conheço tem um interessezinho meio doentio em política e atualidades. Quanto aos cristãos, são mais raros ainda, numa época em que o islamismo, o budismo, a wicca e o espiritismo recebem todo o respeito e na qual é muito mais fácil encontrar um tarô com motivos tirados dos índios sioux do que uma simples imagenzinha de santo.

De modo que quando encontro alguém que diz que não é de direita nem de esquerda, quase nunca acho que se trata dessa que é, afinal, a mais rara alma de todas, o Alienado Genuíno. Não, a minha experiência é que se trata de um tipo muito mais comum: alguém que se acha complexo demais para ser descrito de modo tão simplista. Esse é o seu orgulho, ser Complexo Demais Para Ser Rotulado. Ele tem opiniões políticas, e muitas. Ele se interessa pelo assunto: não está nem abaixo, nem acima dele. O que há é que ele acha que o conjunto das suas opiniões é tão pessoal, tão complexo, que Esquerda e Direita não fazem sentido para ele, e toda uma nova categoria deveria ser inventada para acomodá-lo.

Mas aposto uma coisa, no entanto: o Homem Complexo Demais, se é sincero, e se não nega que seja de esquerda ou de direita apenas por covardia ou estratégia, é alguém que simplesmente se conhece pouco, e que nunca parou para perceber que todas as suas opiniões apontam claramente ou para a esquerda, ou para a direita – e mais freqüentemente para a esquerda. Suas opiniões sobre o aborto, a eutanásia, a legalização das drogas, o papel do Estado na economia e a influência da religião na vida pública são exatamente aquelas atribuidas tradicionalmente à esquerda, ou pelo menos a maioria delas; mas de esquerda, ele? Nah, não, nunca.

Uma pequena parte da esquerda-que-nega-ser-esquerda faz isso conscientemente, por covardia ou por estratégia. Pretendendo estar livres para atacar os dois lados, atacam um lado com frequência e o outro uma vez a cada dois anos. Pretendendo estar sujeitos aos ataques dos dois lados, por serem supostamente independentes, na prática estão livres de qualquer ataque – jurando à esquerda que não são de direita e à direita que não são de esquerda.

Mas esses são poucos. A maior parte faz isso sem sequer perceber que é de esquerda. Essa é a Nova Esquerda, a Esquerda que Não é Esquerda. Como esquerda seriam atacáveis, mas como simples representantes do que consideram ser bons sentimentos, não são atacáveis de forma alguma. E cada vez que encontro um tipo desses, realmente tenho muito medo que ele comece a sambar de tanta alegria inzoneira.

(Publicado originalmente na edição 31, de junho de 2005, da revista Semana 3)

Alexandre Soares Silva, maio de 2005

“Dialogando” com o papa



Revistas dizendo na capa algo do tipo, “Bento XVI fala dez línguas – mas saberá dialogar?”. Jesus. Mais idiota do que isso, só se usassem três pontos de interrogação.

(Por falar nisso, que palavra grotesca, “dialogar”. Como “irreverente” e “prestigiar”, é uma palavra usada quase exclusivamente por idiotas. Também não sou muito fã da palavra “acrescentar”, usada em frases como “tal livro não acrescenta nada”, “essa discussão não acrescenta nada”. Noto que são frases ditas geralmente por pessoas burrinhas. Sua experiência não lhe diz a mesma coisa? Mas ah, divago. Vamos voltar a falar sobre o Papa.)

(Não, vou fazer outra digressão. Eu gosto de digressões, tenha paciência. Meu texto ideal seria uma única digressão, sem assunto principal nenhum. Ele viria todo inteiro dentro de parêntesis – um no início do texto e outro no final, e só. Tenho a impressão que Flann O´Brien já fez isso. Mas o que eu ia dizer é o seguinte: você também não está cansado de pessoas que dizem que estão cansadas de ouvir falar sobre o Papa? Eu estou. Mas ah, voltemos a falar sobre o Papa.)

Eu disse no plural, “revistas”, porque embora essa seja a descrição literal de uma capa da “Veja”, é igual em espírito a muitas outras capas de revistas – estou chutando, não tenho passado por bancas, mas tenho certeza do meu chute - e a centenas de colunas de jornais no mundo todo. Jornalistas barrigudinhos escrevendo colunas nas quais basicamente expressam, com grande sensibilidade humanista e carioquinha, seu desejo de que o Vaticano fique um pouquinho mais parecido em espírito com uma redação de jornal ou um boteco. Não tenho dúvida que querem que a sabedoria dos Santos Padres, tão rígida, tão antipática, seja substituída pela sabedoria moderninha de Arnaldo Jabor e do Dr. Dráuzio Varella; e que a camisinha, claro, só seja evitada por preguiça e medo da perda da ereção, e nunca por essa proibição estranha e misteriosa ao adultério.

Poderá o Papa “dialogar”? Espero que não. Cada vez que ouço alguém dizer que é preciso que o Papa “dialogue”, eu imagino o Papa num desses programas de auditório com adolescentes na platéia, como o de Serginho Groisman. Bento XVI sentado no centro do palco, uma pré-adolescente carioca excessivamente maquiada levantando e dizendo:
– Papa, é o seguinte: eu queria saber porquê você é contra a camisinha, sendo que a camisinha ajuda no combate à Aids. – Todos os adolescentes na platéia gritam aeeeeeeee, e batem palmas; ela fica empolgada e diz: – E também porque você não quer que os gays casem e abortem e essas coisas todas. Se eu usasse camisinha não tinha abortado na semana passada, fala sério.
– Aeeeeeeeeee...

Noto que quase todas as pessoas de bom senso são contra o Papa Bento XVI. Aquilo que se chama de bom senso é, basicamente, o conjunto de crenças bacaninhas e iluminadas que são defendidas por atores musculosos da Globo que fazem jiujitsu e têm tatuagens de caracteres chineses nos braços. Estude o que pensam essas pessoas, aquilo que elas dizem em programas de auditório que faz com que a platéia diga aeeeeeeeee..., e saberá o que pensa o resto do mundo, incluindo intelectuais – que pensam exatamente como atores da Globo, com a única diferença que se expressam um pouquinho melhor e citam uns aos outros como confirmação do que eles próprios pensam. Intelectuais citam intelectuais; atores da Globo citam as avós – “minha avó já dizia” etc. etc. – e essa é a única diferença entre eles, digo-vos mui solenemente. (Intelectuais são também um pouquinho mais niilistas, mas a diferença acaba aí.)

O bom senso é, quase sempre, contra o reacionarismo do Papa Bento XVI. O bom senso é a favor do uso da camisinha, a favor do casamento dos gays, contra a infalibilidade papal e a favor do “diálogo com outras religiões”. O bom senso é relativista – acha que todas as religiões são boas porque “passam algo de bom” e que, “sei lá, cada um tem a sua verdade, você tem a sua verdade e eu tenho a minha verdade”. O bom senso quer “dialogar”. Ah, não dialogue, Papa. Por favor, Papa. Por favor.

Com muita vergonha, percebo que (com exceção da legalização do aborto, à qual me oponho fanática e medievalmente) sigo o bom senso, na maior parte dos pontos, contra o Papa Bento XVI. Também eu não vejo nada de errado no casamento dos gays (“ah, deixa eles” costuma ser a minha reação, como é a reação do elenco da novela “América”, tenho certeza), nem vejo nada contra a camisinha, além do fato de que camisinha é uma chateação. Mas, ah, ao contrário das outras pessoas de bom senso, eu me envergonho do meu bom senso. Por nada desse mundo queria ter a mesma opinião que Hebe Camargo sobre o casamento gay. Acredite: se você consegue se imaginar dizendo sua opinião sobre alguma coisa num programa de auditório, e ouvindo a reação de aprovação da platéia de retardados – aeeeeeee... – é porque sua opinião está errada, e cheia de horrível e grotesco bom senso. Eu queria estar cheio de mau senso – do mau senso dos santos, dos gênios, de Deus. Mas realmente acredito que ainda tenho boas chances.

Que triste estado de coisas, aliás, em que as pessoas olham para o Papa e pensam logo em camisinha e casamento gay. Dois mil anos de teologia, ó pessoas. Parem um pouquinho de pensar em camisinha e casamento gay. Os mistérios da Santíssima Trindade? A hierarquia dos anjos? A história dos mártires, dos santos, dos mosteiros e conventos? São Bartolomeu expulsando os deuses da Índia? São Teodoro sendo rasgado por unhas de ferro? E só o que vocês conseguem pensar, quando olham para um Papa, é camisinha e casamento gay?

(Publicado originalmente na edição 30, de maio de 2005, da revista Semana 3)

Alexandre Soares Silva, mar/abr de 2005

Os impolidos



Depois de me meter numa troca breve, boba e inconseqüente de semi-insultos na internet, várias pessoas me enviaram e-mails um tanto histéricos dizendo que “responder é pior” e me pedindo para “deixar pra lá”. Foi mais ou menos como se eu tivesse tido uma discussão morna, não particularmente violenta com alguém, e de repente meus amigos me sacudissem pela camisa com violência, gritando “Pelo amor de Deus, não faz papel de bobo!... Você não está vendo que responder é pior?”, cuspindo na minha cara de tanta emoção.

Em todas as brigas-de-internet em que me meti, os espectadores pareciam mais perturbados que os envolvidos diretamente. As pessoas se sentem mal com brigas. Gostam de acompanhá-las, mas sofrem. E não vêem nenhum valor nelas. Acham uma apelação, uma descida do espírito humano ao nível de babuínos.

Mas não é. Babuínos não discutem. Da minha parte vejo muito valor em discussões na internet ou nos jornais. Em primeiro lugar, são divertidas de ler – por mais que as pessoas hipocritamente neguem isso. É uma das coisas mais divertidas de ler no mundo: briga, por escrito, de gente que se odeia.

E em segundo, é divertido de participar. Algumas pessoas se sentem perturbadas demais quando discutem – evidentemente não nasceram para isso. Mas outras sentem que uma discussão ajuda na concentração dos pensamentos, e torna suas próprias idéias mais claras. No meio de certas polêmicas lhes ocorrem idéias que nunca teriam tido de outra forma. É um grande esporte, e uma das melhores ocupações para o espírito humano – desde que certos níveis de decência e polidez sejam mantidos, o que é claro que é um tanto raro. E é raro, ainda por cima, porque algumas pessoas declaradamente odeiam a polidez.

Sempre achei engraçado ver o número de pessoas que se irritam comigo não porque eu seja arrogante, pedante e reacionário – claro que isso tudo ajuda, old thing – mas simplesmente pela minha evidente, e bastante artificial, polidez. Os inimigos da polidez são muitos, mas têm em comum uma certa adolescência do espírito: preferem ser francos e espontâneos e brutais. Acabaram de descobrir que existe algo de artificial na polidez, e que as pessoas que lhes perguntam como vão – oh! – não estão realmente interessadas em saber como eles vão. Nunca se recuperaram desse choque. Podem ter quarenta ou cinqüenta anos, mas ainda não se recuperaram completamente do choque dessa descoberta que fizeram na adolescência.

Mas tudo o que temos para proteger a civilização são tanques e boas maneiras. Na verdade essa é a minha definição de civilização, boas maneiras; da qual se segue a definição de barbárie, que é uma contínua grosseria. Somos atacados pelas grosserias de vizinhos, de blogueiros, de passantes na rua; no cinema somos chutados pela grosseria de pessoas que sentam atrás das nossas cadeiras, e em galerias comerciais de Jerusalém pessoas são explodidas pela grande grosseria de terroristas. Esses são todos os inimigos da civilização – as pessoas que odeiam a polidez. Eles têm orgulho, você sabe, de suas grosserias; têm orgulho de serem muito francos e impolidos; justificam a impolidez pela espontaneidade, ou até mesmo por algum bem qualquer (político, na maior parte das vezes) que acreditam maior do que a mera polidez.

Mas eu queria propor, muito calmamente, que nada humano é pior do que a impolidez. Bem entendida, a impolidez é a única forma que o Mal assume no mundo. Se, por exemplo, consideramos impolida uma pessoa que visita outra sem aviso, estragando os planos do visitado para toda a noite, por que não consideramos impolida uma pessoa que atira na testa da outra, se ao fazer isso ela estraga os planos da outra para muitas e muitas noites? A maldade, antes de ser maldade, é uma grande impolidez.

Tanques e boas maneiras. Claro, tanques são uma forma de grosseria sólida, de grosseria móvel – mas algumas grosserias são justificadas para acabar com outras grosserias piores. Em situações normais, por exemplo, arrombar a porta de uma casa é uma grosseria; mas todos concordam que a polícia está justificada em arrombar certas portas para acabar com esse tipo específico de grosseria que chamamos de crime. Da mesma forma, a guerra é uma forma de grosseria em massa – as pessoas põem uniformes para serem grosseiras contra um país inteiro – mas às vezes é necessária para acabar com outras formas piores e mais intensas de grosseria. Alguns países islâmicos, por exemplo, são grandes defensores da grosseria. Contra dissidentes, contra judeus, contra americanos, contra infiéis, contra mulheres. Para mim é claro que eles têm que ser parados com alguns atos de grosseria limitada, minimizada e justificada. Eis o motivo de admirar George Bush. Ele teve a coragem de defender uma civilização tão precária quanto a ocidental, ao mesmo tempo
contrariando milhões de manifestantes pelados no mundo todo – e deixando a srta. Susan Sarandon profundamente desgostosa, ainda por cima. Isso também tem que valer alguma coisa.

Por defender esse tipo de coisa – e coisas piores, e coisas piores – acho muito compreensível que muita gente me odeie, e sintomático que sejam pouco educadas. De que vale a educação, eles sempre perguntam, para defender o bombardeamento de criancinhas iraquianas? Não é melhor ser grosseiro e truculento, e estar, como eles acham que estão, do Lado do Bem? Do Lado de Madonna e das Dixie Chicks?

Pelo que vale, eis a minha resposta: não. Posso estar errado no que diz respeito ao Iraque, mas não no que diz respeito à impolidez. A impolidez e a maldade são uma coisa só. E tudo o que podemos querer nesta vida é sermos polidos de uma maneira tão perfeita, mas tão perfeita, que cheguemos até mesmo a sermos bons.

(Publicado originalmente na edição 29, de mar/abr de 2005, da revista Semana 3)

Alexandre Soares Silva, fevereiro de 2005

O melhor de Lord Ass



* Personagens esféricos são uma invenção de romancistas; na vida real todo mundo é plano. Quando há uma exceção, e alguém nasce psicologicamente esférico, as pessoas ficam tão espantadas que escrevem livros sobre ele. Ver Samuel Johnson, Lincoln, Churchill.

* Quem andou de jet-ski jamais fará contribuição alguma para a humanidade.

* Há pessoas tão más que até mesmo seus impulsos bons são ruins. Assim que resolvem ajudar a humanidade, a primeira coisa que fazem é odiar quem acham que não ajuda a humanidade.

* Há filmes que já começam emocionados. Você nem precisa ficar emocionado, porque o filme já está emocionado por você.

* Eis porque a Monarquia caiu – as pessoas queriam que todas as formas de governo fossem um pouquinho mais chatas. O grande motor da história é a propensão das pessoas chatas a chatificar tudo.

* Toda a literatura latino-americana é especialmente amada por idiotas, que evitam a literatura anglo-saxã por instinto e política. Digamos que demonstram uma prontidão para ler Cortázar que não costumam ter para ler Dickens.

* As pessoas sempre falam do clima de liberdade, imaginação, humor e aventura que havia tomado conta dos estudantes em 68, mas ninguém fala da liberdade, imaginação, humor e aventura dos policiais da CRS dando pancadas nos estudantes. É preciso ser muito sem humor para não ver o lado cômico da repressão policial, e a possibilidade nunca efetivada de dar uma boa cacetada na cabeça de Jean-Luc Godard justifica todo o governo De Gaulle.

* Quem perde a religião e a substitui pela arte corre esses riscos, de ser a velhinha beata e mofadinha da Grande Arte, distribuindo imagens de Kafka crucificado e rezando a Ismail Kadaré para ver curada uma sentença tortinha.

* Quando uma mulher está fazendo força para ser mulher ela se limita a falar de, e pensar em, relacionamentos fracassados, abortos, e vários tipos de sentimentos asquerosamente delicados. A feminilidade, se é um estado a ser alcançado, é notavelmente parecida com a chatice.

* Os puritanos são xingados por todos os lados, mas eu acho uma gente legalzinha. Queriam reprimir o teatro. E se dependesse deles eu nunca teria visto o pinto de Harvey Keitel, nem aqueles caras todos mijando nos filmes de Pasolini.

* A função da crítica é me divertir falando de livros. Não tem problema que esteja errada, se estiver errada divertidamente; mas nunca deveria estar certa, se estiver certa chatamente.

* Pensei em dizer que todos os atletas são intelectuais frustrados. Imagine uma roda de gente discutindo Kant. Daí chega o atleta. “Diz alguma coisa sobre Kant”, dizem para o atleta. “Não consigo, mas em compensação eu pulo alto pra caramba”. E imediatamente começa a dar pulinhos no mesmo lugar.

* A preguiça resolve problemas. Quanto estou cheio de coisas pra fazer, deito no chão com um livro e fico assim durante dois ou três dias. De vez em quando paro pra ouvir Gilbert e Sullivan. Não falha: algumas coisas se resolveram sozinhas, outras chegaram a uma crise que já não precisa da minha intervenção, e quase sempre algum amigo meu, que havia pedido um favor, deixou de se considerar amigo meu, e portanto o favor não precisa mais ser feito. Tente, old boy.

* O prazer de não ler jornal. Alguém pergunta pra você: “Nossa, você viu esse escândalo do Repolhinho?” E você não viu, não sabe de nada, porque acordou e foi diretamente ler Sêneca. Ah, o prazer de ignorar completamente o escândalo do Repolhinho.

* Histórias de detetives são uma forma de história de caça, e histórias de caça foram provavelmente o primeiro tipo de história que as pessoas contavam umas às outras, e provavelmente serão as últimas também. Foi só no século dezenove que os escritores sérios deixaram de escrever sobre a emoção da caçada para escrever sobre proxenetas sifilíticos que se matam no final. É uma moda, vai passar.

* Meu vegetarianismo não hesitaria em comer os braços gordos de um camelô, os tríceps de uma cobradora de ônibus ou a queixada de um fiscal da prefeitura. Meu vegetarianismo só poupa o coitadinho do boi e o inofensivo frango.

* Já há tão poucas pessoas livrescas. As pessoas deviam ser ainda mais livrescas. Por mais que uma pessoa leia, devia ler mais e viver menos. Não há leitura que não seja interrompida pela vida, que é uma senhora desgrenhada que baba.

* É sempre fascinante ver os comentários de centenas de jornalistas de esquerda ridicularizando a idéia de que exista um número excessivo de jornalistas de esquerda.

* Lula foi eleito pelo mesmo motivo de que existem pornôs em que donas de casa fazem sexo com encanadores: paixão pelo Homem do Povo.

* Todas as pessoas que usam as palavras confundir, liberdade e libertinagem na mesma sentença deveriam levar um tiro no joelho; exceto eu, que acabei de fazê-lo por motivos didáticos; mas todos os outros, sim.

* Ser acadêmico é para sempre ouvir os recados de grandes homens pela boca de homens menores. “Dostoiévski telefonou e disse que...”, diz Bakhtin.

* (sobre a universidade) E no entanto a idéia, em si, de um homem inteligente conversando sobre livros com outros homens inteligentes, num lugar agradável, longe de bancos, borracharias e despachantes, é uma das imagens da felicidade na terra. A idéia da universidade é essa, é só isso: um lugar longe de telefones, longe de contas a pagar, longe das banalidades grotescas da vida prática, onde homens inteligentes possam conversar sobre livros. De preferência em prédios neoclássicos onde a hera cresce... Que os prédios tenham ficado feios e que a conversa tenha se tornado estúpida é uma das muitas tragédias do século vinte - como o fim dos monóculos e da era clássica dos whodunits.

* É estranho, também não sei explicar, mas continuo escrevendo aquilo que eu penso, e não aquilo que você pensa.

(Publicado originalmente na edição 28, de fevereiro de 2005, da revista Semana 3)

Alexandre Soares Silva, dezembro de 2004

Não me falem das nossas coisas



Acabo de ver um documentário sobre Truman Capote – ele sempre muito divertido, falando mal de uma ex-amiga na tevê com aquela maldade que me faz admirar certas bichas, literárias ou não. Meu problema é com o escritor brasileiro que aparece nos intervalos do documentário americano. Porque justamente lhe falta maldade; porque ele fala com um tom adocicado de bispo; porque ele é todo diáfano.

Começa que me irrita essa mania de interromper cada documentário estrangeiro para mostrar uns brasileirinhos tronchos que dizem, “Impressionante, não é, gente? Mas agora vamos ver como é que tudo isso se refletiu no Brasil”. Que mania de falar nas “nossas coisas”. É muito vil.

Outro dia comprei a edição brasileira do “Dicionário de Lugares Imaginários”, de Alberto Manguel – muito bom, muito bom, recomendo atabalhoadamente –, e vi na nota do tradutor que eles preferiram cortar vários verbetes dedicados a Tolkien e C. S. Lewis para dar lugar aos “nossos autores” – entre eles, João Ubaldo Ribeiro. Por favor, que necessidade é essa de ficar me lembrando dos nossos autores? Acho muito rude.

Suponho que isso acontece no mundo todo, mas em alguns lugares isso deve ser especialmente cruel. Imagino um documentário sobre Ticiano e Tintoretto passando na tevê da Guatemala, por exemplo. Daí nos intervalos aparece um intelectual guatemaltecozinho falando sobre os equivalentes guatemaltecos de Ticiano e Tintoretto. Oh, a dor, a dor. É de uma maldade de chinês lembrar a um guatemalteca distraído que ele é um guatemalteca – assim, de repente, quando ele olhava Tintorettos comendo pipoca. Vamos parar com esse tique do espírito de ficar pensando nas “nossas coisas” quando vemos as coisas dos outros? Pode ser?

Mas eu falava desse escritor magrela, inteligente, refinado, vago e gasoso, algo untuoso, que apareceu cheio de doçura na minha tela e me revoltou. Essa visão diáfana da literatura é o principal obstáculo à produção de uma obra-prima. Essa gente diáfana! Falam de coisas sublimes, e mesmo quando têm humor é um humor meio sublime, malditamente sublime – um humor que nos enleva, cheio de epifania e vagamente asqueroso.

A avozinha folclórica de alguém diria que “é falta de Jesus no coração” – e, quer saber, é mesmo. Esses sentimentos de exaltação religiosa que se desenvolveriam tão bem numa igreja ficam patéticos numa livraria e piores ainda num documentário sobre Truman Capote. O escritor brasileiro no documentário fala sobre romances-reportagem com uma exaltação de Titi, da Titi d´ “A Relíquia” de Eça de Queirós – mas de uma Titi que substituiu os santos todos por escritores. Quem perde a religião e a substitui pela arte corre esses riscos, de ser a velhinha beata e mofadinha da Grande Arte, distribuindo imagens de Kafka crucificado e rezando a Ismail Kadaré para ver curada uma sentença tortinha.

Oh, como são sérias essas Titis da literatura. Note que de fato preferem autores da Europa Central, e que a literatura anglo-saxã lhes mete um nojinho qualquer – é muito simples, muito macha, tem demasiado humor. É claro que Kafka tem humor (não sejam tão rudes a ponto de me informar isso assim na minha cara), mas não é exatamente isso que eles procuram em Kafka. No fundo gostam mesmo da Europa Central porque todos os romances de lá têm uns campinhos de concentração no meio, e estão cheios de uns exemplos de sofrimento sublime.

O que dá um certo desgosto é ver como os escritores – os escritores medíocres de qualquer país, de qualquer tempo – têm essa cara de escritores. Em qualquer profissão é assim – advogados medíocres se esforçam para pensar como advogados e a parecer com advogados, ter hobbies de advogados e mulheres com cara de mulheres de advogados, com filhos de advogados (preferencialmente) e cachorros de advogados. Mas nas artes, que são justamente o terreno das individualidades (oh, fui um pouco diáfano agora), não deveria ser assim, não é? E no entanto vemos pintores usando boinas e fazendo uma cara impressionante de pintores, com um jeitão muito artístico, e escritores que bebem porque se lembram vagamente que Hemingway bebia, e usam barba para ter uma cara seriona e atormentada, e falam desse jeito oh-tão-diáfano sobre literatura, e (claro, claro, claro) são de esquerda – automaticamente de uma esquerda ligeira, irrefletida, simpaticona e emocional.

“Todos os escritores brasileiros são de esquerda”, disse num jornal um escritor barbudo, Marçal Aquino, que escreve sobre assassinos profissionais baratinhos que trabalham nas estradas mais vagabundas e esburacadas do país (ainda se fosse nas estradas mais atraentes! Caramba!). E sim, tem razão: os escritores são de esquerda como os pintores usam boina – porque lhes disseram que é assim mesmo e eles não ficaram pensando muito pra ver se era assim mesmo. Porque, em suma, queriam ter a cara da profissão, queriam se sentir muito escritores. Porque são medíocres. Oh, a pena que têm dos pobres. Oh, as visitas que fazem a presídios...

Todos ouvimos em algum lugar que devemos evitar a construção de personagens unidimensionais ou estereotipados na literatura; que todos os personagens devem ser muito complexos, muito surpreendentes. O motivo disso, costuma-se dizer, é que “as pessoas na vida real são multidimensionais e surpreendentes”. Mas o que fazer quando os escritores mesmos são uns personagens tão estereotipados, e se aproximam de mim usando boinas e bottoms do PT e falando do quanto resistiram à ditadura?

(Publicado originalmente na edição 27, de dezembro de 2004, da revista Semana 3)

Alexandre Soares Silva, set/out/nov de 2004

Ai, Creuza



Por que é que tantos escritores, tão logo lhes põem um microfone na boca, viram tamanhas bestas solenes? Fazem uma cara seriona de meter medo, e falam tão empolado que parecem engenheiros, cartolas de futebol, presidentes do Rotary Club.

“Escrever é um ato de liberdade”, disse numa entrevista o escritor carioca J.P.Cuenca; e imagino que ao chegar em casa deve ter se dado um tapão na testa por não ter dito que “escrever é um exercício de liberdade” (“Droga, eu devia ter dito que escrever é um ‘exercício de liberdade’!”).

Lygia Fagundes Telles: “Eu não quero confundir, eu quero denunciar. Estou tentando delatar as feridas do meu país.” (Ugh.) E mais adiante, na mesma entrevista: “Uma vez, um homem, que nunca vi na minha vida, ligou aqui para casa e disse que leu uma passagem de "A Disciplina do Amor" e resolveu desistir de se matar. É nesse tipo de cura que eu acredito.” É um problema quando uma pessoa começa realmente a acreditar nessas coisas que lhe dizem. Se eu me matar algum dia, antes telefono para a Lygia Fagundes Telles e digo que é por causa dos livros dela.

Fernando Bonassi: “Eu espero, com a minha arte, que as pessoas transem melhor, sejam menos racistas, percebam que se não distribuírem a renda serão assassinadas na esquina segurando seus Rolex.” Good God, se eu tivesse dito uma frase tão constrangedora uma vez na vida eu quereria morrer - e acredito que nem mesmo a leitura de “A Disciplina do Amor”, da Sra. Lygia Fagundes Telles, me demoveria da idéia. Mais de Bonassi, que aliás foi gentil uma vez comigo, colocando um romance meu numa lista dos cinco melhores romances do ano 2000 que saiu na revista TRIP (retribuo ficando enojado com sua entrevista): “O que eu acho que a gente pode fazer com a literatura é dar dignidade à vida das pessoas.” Não, meu filho, não, faz isso não. Não me dá dignidade não que eu vou gastar tudo em pinga.

O sujeito realmente se vê saindo por aí distribuindo dignidade aos outros. “Toma, toma dignidade! Para o senhor também, meu bom velho!” Tento imaginar como deve ser pensar em si mesmo nessa forma, como um Distribuidor de Dignidades. Deve ser bom. Mas eu só quero ler um livro – não quero que me dêem dignidade, acho uma insolência.

Fico me perguntando se o problema é comigo e com meus amigos – porque nenhum de nós seria capaz de dizer sem rir essa frase que Fernando Bonassi diz todo sério:
ÉPOCA – Você acha que só se escreve por desespero?
Bonassi – A melhor literatura, sim. Dostoiévski, Camus, Graciliano Ramos, gente que escreveu com as vísceras, com uma originalidade insuportável.

Marcelo Mirisola disse uma vez que escrevia com os colhões, e Bonassi acha que tem que ser com as vísceras; se os escritores brasileiros não sabem nem onde colocar a caneta, como esperam encher seus leitores de dignidade? E oh, a seriedade, a seriedade atroz de quem acha mesmo que tem que escrever “com as vísceras”, e diz isso sem nem uma risadinha de escárnio sequer. De quem acha que os seus livros ensinam a “transar melhor” (santo Deus!), “ser menos racista” e “distribuir renda” – e que além disso tudo ainda salvam a vida aos suicidas! Aos suicidas! Hemingway só se matou porque não pode ler “A Disciplina do Amor”, da Sra. Lygia Fagundes Telles, e...

- Menas, menas!

Oh, Ok.

Esses escritores devem achar que os leitores são uns idiotas, não? Que são indignos, e sujinhos, e nem sabem que correm o risco de serem assaltados na esquina “segurando os seus Rolex”, e que precisam que lhes digam como lavar atrás da orelha, não beber água estagnada, essas coisas todas? E que aliás vão todos se matar se não lerem a tempo “A Disciplina do Amor”? Ora, todos sabemos que alguns leitores até são assim, umas estrumeiras mesmo, mas não exageremos, não exageremos. Imaginar um velhinho sentado numa poltrona, pedaços de macarrão na barba rala, lendo um romance de Fernando Bonassi e ficando todo digno lá pela página 147 (imagine o velhinho ficando digno de repente, cara de metidão, levantando da poltrona ao som de um coro masculino soviético e sacudindo o punho contra uma sociedade injusta e desumana) diverte minhas noites, mas mesmo assim vou ter que pedir que parem um pouquinho, um pouquinho só, com essas empolações todas.

Alfredo Bosi: “Persigo a palavra poética, mais densa que a cotidiana.” Quando estava no colé-gio, qualquer frase desse tipo era recebida por um “ai, Creuza” que me parece que só faria bem ao sr. Alfredo Bosi. (Ou um tapão na nuca. Aliás uns tapões na nuca, bem distribuídos, resolveriam os problemas de grande parte da literatura brasileira.)

Oh, chega, chega. Os cadernos literários estão cheios de frases assim, com escritores gaúchos ou franceses ou chineses dizendo que querem “retratar a sociedade burguesa”, “a opressão feminina”, “o inferno da violência no coração de cada ser humano”, e todas essas bobajadas que um simples “ai, Creuza” resolveria.

Só digo que hoje me cansei de tanta empolação humana - dessa visão da literatura como uma coisa que o tio lá faz pra me ensinar a ser menos racista e não me matar e limpar atrás da orelha.

E ainda estranham que poucas pessoas leiam. Quem quer pagar para levar tamanha passada de mão na cabeça? Depois de ler os livros deles, eu, que não era racista (oh, juro), sou capaz de virar racista só de pirraça. Mas me matar não vou, é muito esforço só pra dar um susto numa senhora pomposa como Lygia Fagundes Telles.

(Publicado originalmente na edição 26, de set/out/nov de 2004, da revista Semana 3)

Alexandre Soares Silva, agosto de 2004

Céu, inferno e as mulheres



Amigos que freqüentam a Unicamp me dizem que estou errado quando digo que o Inferno fica em Osasco. As pessoas do país todo, dizem eles, quando morrem e foram más, vão para Barão Geraldo assistir aula (e se tornam Mestrandos de Ciência Política. Tenho certeza que no Inferno todos são mestrandos, arrastando os pés em busca de bibliografias e para sempre ansiosos pela aprovação da bancada de demônios).

Da minha parte não acho que vocês de Campinas possam se gabar de ter O Inferno; a Unicamp não me parece pior do que a Usp, a Puc, Oxford ou qualquer Uniban. Com maior ou menor eficiência, bibliotecas melhores ou piores e alunos com diferentes graus de feiúra (quanto pior a faculdade, mais espinhas eles têm – eis aqui um bom método de classificação do ensino superior que ainda não vi ser aplicado), são todas parte do Inferno. Talvez, ao morrer, as pessoas más façam um vestibular. Quem além de mau for burro vai para uma dessas universidades com siglas esquisitas, Unibao, Unibimbo, sei lá eu.

Mas sim, a academia é uma das muitas formas de infelicidade no mundo. E a pós-graduação é uma forma especialmente cruel de tortura - um pau-de-arara dos joelhos do espírito. Quem faz tese não sorri, quem faz tese suspira muito. Todas as pessoas que conheço que estão fazendo tese dizem que não têm mais tempo para ver filmes, para ler livros, para fazer cútchi-cútchi na bochecha da mulher amada. Parecem arrasados, massacrados pela vida. Devem de fato ter sido maus e ido para a Unicamp.

Quem faz tese, alguma coisa fez para merecer.

E as pessoas que trabalham nas secretarias das faculdades são evidentemente demônios. Podem ter vários nomes, Marta, Juvenilda, Tim. Mas pessoas que trabalham em secretarias de faculdades são sempre demônios que riem da sua, nossa, minha, tragédia burocrática. Manuseiam papeizinhos coloridos com ares de monstros gargalhantes, de oficiais da Gestapo decidindo o seu destino com frieza. E fecham o guichê na sua cara de alma condenada.

E, dizem-me, Hitler e Brizola foram vistos assistindo a uma aula de “Literatura e Outros Códigos Estéticos” na sala CL10 do Inferno.
-Mãe, que aconteceu com o vovô?
-Ah, meu filho, o vovô morreu e foi desenvolver tese. Agora reza e vai dormir.

***

(Escrevi o texto abaixo, sobre as mulheres, algum tempo atrás – e não tive coragem de publicar porque naquela época um amigo meu estava casando, e eu não queria que ele desse uma interpretação excessivamente literal aos meus exageros retóricos. Considerando-se que eu era o padrinho, não pegaria bem ele achar que eu realmente queria interromper o casamento, dar um tiro nele e, humm, “fazer algo” com a noiva. Padrinhos não podem fazer isso. Que gafe, que gafe. Mas agora vai.)

Sinto ciúmes de todas as mulheres do mundo. É terrível, numa noite como esta, encostar a cabeça na janela, olhar para a cidade e imaginar que cada luzinha é uma mulher linda me traindo. Queria sair de mangueirinha separando todos os casais, e acho a atração sexual que as mulheres têm por homens que não sou eu uma coisa obscena, imunda. Nunca vi um casamento, mesmo de uma desconhecida, em que não quisesse levantar e gritar, “Parem! É um erro!” Vejo a história da humanidade como uma longa história de traições a mim – as mulheres deviam, todas (Helena, Laura, Eleonor de Aquitânia) terem se mantido castas na esperança de que um dia eu nascesse. Cada carinho feito por uma mulher linda desde o início dos tempos devia ter sido feito em mim, em mim – mesmo os carinhos feitos às rosas. E esta é toda a tragédia do mundo.

***

Algumas mulheres esperaram por mim - na Grécia, na Turquia, na China, na Índia, na Itália. Sob os impérios de Carlos Magno, de Teobaldo II, de Calígula e Caracala, sob as presidências de Lincoln, Taft e Venceslau Brás, algumas mulheres envelheceram esperando por mim. Não há noite que passe sem que eu beije a memória do rosto delas, refletida na fonte tranqüila da minha imaginação.

***

A atração dos homens pelas mulheres é também vil, é grosseira e insolente - elas são minhas, e só eu sei apreciá-las com a suficiente delicadeza de espírito. Cada marido é um canalha que comete adultério todas as noites de sua vida de casado, pelo fato de ir para a cama com a mulher que deveria ter casado comigo, se não fosse o azar de ter sido separado delas por décadas ou séculos ou mares. Aproveitaram-se desse pequeno azar e oficializaram seu adultério vil com uma cerimônia que apenas imita o casamento. Cada casamento é um crime, e queria dar um tiro em cada noivo.

***

Queria acordar no meio de uma cama impossivelmente grande, onde estou eu e todas as mulheres lindas que já existiram. Elas todas em variados graus de deshabillé. Abraçado a Ava Gardner, dou um beijinho no braço de Elsa Martinelli. Agarro Juliette Binoche pela cintura, rolamos para cima de Katie Holmes e minhas duas namoradinhas de infância, Patrícia Nakamura e Adriana Espíndola. Deduzo pelas conversas que Cleópatra está com o controle remoto, mudando de canal em canal – há uma tela gigantesca na nossa frente, e entre pernas e pescoços vejo, durante um segundo, a cara de James Stewart em “Janela Indiscreta”. O filme está começando e ouço Elizabeth Taylor dizer, “Vou fazer pipoca”. Isabella Rosselini faz comentários sarcásticos – não a enxergo, deve estar na cama uns vinte metros mais à esquerda. Enquanto uma Anita Ekberg jovem assopra no meu umbigo e Charlotte Rampling me faz cafuné, pergunto o que aconteceu, como vim parar lá, que diabos é isso. Me dizem que morri, estou no céu, casado com elas todas. Pergunto pelos antigos namorados e maridos delas. “Morreram e viraram todos gays. Estão casados uns com os outros, felicíssimos”. (Fico feliz por eles, muitos eram meus amigos.) “Oh, eu sentia tantos ciúmes de vocês”, eu digo, e começo a chorar. “De vocês todas.” Elas lutam para chegar perto de mim e secar as minhas lágrimas com beijos. “Tantos, tantos ciúmes”. “Ah, passou, passou. Que gracinha. Agora dá um beijo, encosta a cabeça aqui e vamos ver o filme.”

(Publicado originalmente na edição 25, de agosto de 2004, da revista Semana 3)

Alexandre Soares Silva, junho de 2004

Olha, um escritor canhota na sua vida...



Há revistas que não sejam para idiotas? Todas as revistas que vejo na sala de espera do veterinário (é só lá que leio revistas) são para algum tipo específico de idiota.

Há a revista para executivos idiotas ("Você S.A.") e a revista para quem quer ser executivo idiota ("VIP"). A revista para o pai de família idiota ("Veja", "Isto É") e a revista para a dona de casa idiota ("Cláudia"). A revista para a filha idiota ("Todateen"), a revista para o filho idiota ("Superinteressante"), a revista para intelectuais idiotas ("Bravo"), e a revista para esquerdistas idiotas ("Caros Amigos"). E, claro, a revista para donas de casa consideradas idiotas até mesmo pelas outras donas de casa idiotas ("Chiques e Famosos").

Há também uma revista para cachorros idiotas, "Focinhos". Minha cachorra nem fixa os olhos nessa revista, embora eu jure que ela olha algumas das melhores fotos de cachorros-na-neve da "National Geographic". (Ela, como todo mundo, também gosta de fotos de esquimós enrugadinhos.)

Às vezes imagino um especialista em marketing todo feliz porque descobriu um segmento de idiotas ainda não explorado pelas revistas. E lá vão eles criar uma revista para gays idiotas ou albinos idiotas ou sanfoneiros idiotas ou técnicos de vôlei idiotas. Deus!

Fiquei muito feliz depois que parei de ler revistas; hoje só leio livros e mãos. E, ocasionalmente, para rir, as legendas da tevê a cabo.

***

Desde os mais nerds anos da minha vida tento aprender a ler mãos para poder segurar as mãozinhas de mulheres indefesas. Segurei muitas, folheando ao acaso uma biblioteca inteira de mãos femininas, lendo uma linha aqui e acolá - dizendo baixo e devagar as linhas do coração e dos filhos, como um jogador de futebol tentando ler um livro de auto-ajuda.

Se funciona, não sei. Eu mesmo tenho as mãos quadradas de gente prática e ativa, e pfui, sou tão prático quanto sou neguinho. Mas gosto de ir percorrendo a palma da mão da mulher Eleita e Linda com a ponta do indicador, como se estivesse procurando uma passagem especial, deixa eu achar, era tão bonito. Aqui (aí eu minto): "Um blogueiro canhoto entrará na sua vida. Está vendo, é esta linha aqui. Cabelos grisalhos. Modos agradavelmente antipáticos e gentis..."

Uma vez na faculdade li a mão de uma mulher linda que tinha o que os livros caracterizam como "dedos de psicopata". Porque na quiromancia você lê também a forma dos dedos e das mãos, a flexibilidade das articulações, a cor da pele. Sangue seco na borda das unhas também deve ser mau sinal, mas divago.

Os dedos ditos de psicopata terminam achatados, com unhas curtas; os dedos têm um formato um pouco de pinto, com uma cabecinha, sabe? Talvez você ache que não existem dedos assim, mas oh, existem. Essa mulher linda tinha dedos de pinto, dedos de psicopata.

Mas eu não liguei. Ela era quieta, e de repente ria muito alto jogando a cabeça pra trás em momentos que não eram engraçados. Mas nunca a vi sendo psicopata, propriamente falando. Olhei bem nos olhos dela enquanto dizia que tal linha significava "um escritor canhoto na sua vida" etc. etc., e ela me olhando séria, seus longos dedos de pinto descansando na minha mão.

Claro que às vezes um homem dizia, "Ah, você lê? Lê a minha também.", estendendo contente a mão peluda de torcedor do Olaria. Profundo desgosto na tenda quiromântica do Dr. Soaressilva. Ele não entendeu o espírito da coisa.

A coisa toda foi feita pra pegar na mão de menininhas. Não que não seja, hã, válido; deve ter algum sentido. O destino de alguém é guiado pela personalidade - não só, eu sei, mas em grande parte. E a personalidade vai marcando tudo numa pessoa - o rosto, a retidão da coluna, as linhas da mão e a beleza da prosa. Alguém poderia prever o destino de uma pessoa ao ler um soneto escrito por ela, deduzindo coisas a partir do uso de cesuras e cacófatos. O uso das figuras de linguagem indicando quantos filhos a pessoa vai ter. Muita metáfora, vixe, vai morrer virgem.

Uso de rimas ricas e rimas pobres indicando a prevalência da razão sobre a emoção, ou o contrário, sei lá. "Esta inversão sintática aqui indica a chegada de um blogueiro canhoto na sua vida." Mas, ah, de que vale tudo isso sem segurar na mãozinha?

E a última das mãos que veio parar, aninhada, nas minhas - eu realmente fico me procurando lá. E acho que me vejo - deitado na curvatura ascendente da linha do coração, como se fosse numa rede, a cabeça apoiada na almofadinha formada pelos montes de Mercúrio e Apolo - aquelas polpinhas debaixo do mindinho e anular, que no caso da mão dela, dessa mão em particular, formam uma polpinha só, como um bom travesseiro.

"E olha, um escritor canhoto na sua vida..."

(Publicado originalmente na edição 24, de junho de 2004, do jornal Semana 3)

Alexandre Soares Silva, maio de 2004

Olá



Uma amiga minha comprou um livro porque tinha foto de gente pobre na capa e ela sentiu pena. Juro, não estou brincando.

Pensei em fazer isso também. De agora em diante, cada livro meu vai ter foto de gente pobre na capa. É claro que não basta ser pobre... Não basta ser um sujeito que ganha pouco mas está vestido decentemente, sentado numa poltroninha. É preciso parecer pobre, ter um barrigão cheio de vermes, essas coisas.

Na verdade pensei em procurar um primo do meu primo, sujeito alcoólatra que vive sem camisa e é barrigudo, e pedir para tirar fotos dele no seu quintal esquálido, sentado numa lata de soja enferrujada.

- Agora coça o barrigão e faz cara de pobre.
- Mas eu sou pobre...

Que mania é essa de pobreza agora? Cada ator que se vê nos filmes ganha mais do que o personagem que representa, e nunca o contrário. Isso é significativo. Eu queria ver um filme em que o ator ganhasse menos que o personagem que representa. Um. Unzinho.

Bom, o livro era um desses de gramáticos malucos que querem provar que a chamada norma culta (o português que eu e você chamamos de correto) é uma forma de opressão e que legalzinho mesmo é falar tudo errado, coisa e tal. Pode ser, pode ser, mas eu nunca entendi o que há de tão errado em oprimir as pessoas um pouquinho. Oprimir é bacaninha, desde que feito com moderação. Oprima com sabedoria. E se não oprimirmos os pobres, eles vão ficar por aí sem fazer nada, profundamente entediados e falando tudo errado. Vão acabar oprimindo uns aos outros para aplacar o tédio, e você sabe pobre como é quando briga, tem sempre um que dá um tiro e mata uma pessoa que ia passando do outro lado da rua. Estou avisando.

***

Não sabe nada sobre a vida quem vê tevê sentado ou de pé; você tem que deitar no chão, num tapete. E com alguma coisa na barriga subindo e descendo junto com o umbigo - um copo de martini, por exemplo, ou uma garrafa de cerveja, ou um livro, ou um cachorrinho dormindo enrodilhado...

E nada de tevê aberta - que, como sabemos, só é vista agora tarde da noite, ou no meio da tarde, por pessoas que fumam maconha; ninguém sóbrio e são veria aquilo. (Só a minha mãe, talvez.) Tenho espasmos no cérebro cada vez que passo na sala e ouço o diálogo das novelas.

Diálogos de novela são um dos pontos baixos do espírito humano. Você vê um bando de seres humanos reunidos num estúdio no Rio, alguém grita "Atenção, gravando!" e de repente eles não parecem mais seres humanos. Alguns são bons atores, mas começam a falar como extras. Extras, por sua vez, falam como zumbis. Repara nos extras.

Mas é possível ser feliz vendo tevê a cabo. Vendo exatamente aquilo que as pessoas muito cretinas ainda chamam de "enlatados". Se são enlatados, há arte nessas latinhas. Sim, arte. Vi uma vez um escritor brasileiro - velho, ruim e pomposo - falando com desprezo, numa entrevista, das "comediotas da Sony". Mas cada comédia daquelas, mesmo as piores, são reescritas dezenas de vezes, cada linha sendo tratada com um cuidado que duvido muito que esse escritor tenha com os seus livros. Ele lê cada linha em voz alta? Várias vezes? Várias, várias vezes? Com pessoas ouvindo, para que ele possa ir mudando uma palavra aqui e acolá de acordo com a reação delas? Duvido muito.

Era o Inácio de Loyola Brandão, caso você tenha ficado curioso. Não ia mencionar o nome, ia bancar o elegante e coisa e tal. Mas não resisti. Gosto de fazer inimigos gratuitamente. Um por semana - mantém você em forma, acaba com aqueles temidos pneuzinhos da alma. Excelente passatempo para a garotada, diversão sadia que os mantém afastados das drogas. Oh, um dos meus heróis era um jornalista inglês que dizia que, quando não tinha inimigos, saía e arranjava um. Auberon Waugh, homem muito odiado. Disse que os operários ingleses ganhavam demais e eram muito preguiçosos. Depois escreveu uma coluna dizendo que o pessoal da gráfica do jornal ganhava muito mais do que ele e mesmo assim estavam sempre em greve. Depois disso, cada vez que ia entrando no jornal e tinha que passar pela gráfica, era vaiado pelos operários. Passava no meio deles sorrindo levemente e com a coluna excessivamente reta, que arrogante. Ele mesmo se metralhou no Chipre, em 1958. Sem querer. Perdeu um pulmão, o baço, um dedo. Mas divago...

Onde estávamos? Oh, alguma coisa sobre a tevê, mas o resumo é isto: evite os canais abertos, que são feitos por e para maconheiros (nada mais a explica...), e veja sitcoms, que são aquelas coisas que os bocós chamam de "enlatados". Sempre deitado no chão. Deitar no chão é postura mui nobre e conduz à felicidade. Tenho passado muitos anos em casa sem fazer nada, e não posso opinar sobre muita coisa - mas posso opinar sobre a felicidade de ver tevê deitado no chão...

(Publicado originalmente na edição 23, de maio de 2004, do jornal Semana 3)