Paulo Francis no paraísoQuando a empregada no portão me disse que Paulo Francis estava nos fundos, “jogando tênis com convidados”, imaginei que isso era força de expressão e que eu o encontraria sentado na sombra, lendo Isaac Deutscher, digamos (um dos favoritos de Francis, em vida biógrafo de Stalin e Trotsky e agora biógrafo de santos e teólogos) enquanto seus amigos jogavam. Afinal todos conhecem bem a aversão de Francis a esportes. “Minha tolerância é de cinco minutos”, ele havia escrito em vida. Mas contornei a casa de tijolos e, para minha surpresa, lá estava Francis na quadra de saibro, correndo de um lado para o outro e batendo na bola com força um pouco excessiva. A bola ou acertava no rosto de Greta Garbo ou nos testículos do ator John Gilbert. Ambos pareciam furiosos.
“O segredo está no quadril”, Francis disse quando o jogo acabou, se aproximando de mim e jogando a raquete com descuido na cadeira.“Você encaixa o quadril como se estivesse dando uma bimbada. Erroll Flynn me ensinou as manhas todas”. Eu disse que não sabia que ele era praticante de esportes, “além de abrir e fechar porta de táxi”. Sem reconhecer a citação, ele respondeu: “O médico me recomendou esporte pra emagrecer. Você não pode morrer no Paraíso, mas pode ficar gordo como Giuseppe Taddei em Falstaff. ” E em seguida Francis, abrindo os braços dramaticamente, começou a cantar uma ária dessa ópera de Verdi com voz surpreendentemente potente (“Tutte le donne ammutinate insieme/ si dannano per me...”), me embaraçando um pouco. Nos sentamos à sombra, debaixo de um guarda-sol.
Francis vê o volume do gravador dentro de uma sacola e pergunta desconfiado: “É goiabada Cascão? Brasileiro vive me trazendo goiabada Cascão. Não agüento mais goiabada Cascão”. Eu o tranqüilizo mostrando o gravador, e pergunto se há muitos brasileiros no Paraíso. “Não, poucos. Mas todos que vêm me trazem goiabada Cascão. Porque eu disse uma vez que a única coisa da Terra da qual eu sentia falta era goiabada Cascão. Mas eles exageram. Não tenho mais espaço pra goiabada Cascão”. Espero pacientemente que ele pare de falar em goiabada Cascão e volto a perguntar sobre brasileiros no Paraíso. Eles causam problema? São bem-vistos?
“No que me concerne, nucopardoca. Outro dia desses vi um grupo brasileiro pisando forte e começaram os comentários que nos tornaram os japoneses do Paraíso (sem a educação formal, bem entendido): ‘É só isso que é o Céu?’ (imitando brasileiros idiotas). Sim, porque quem já viu a favela Copacabana não pode sequer tolerar o primitivismo da arquitetura do Paraíso. Ignorados na lição de arquitetura, passaram à musical, entoando ‘Cidade Maravilhosa’. Um anjo pediu que fechassem a butuca a fim de não matar de susto os pombos e levar ao suicídio os espíritos provenientes de países civilizados. Saíram batendo o pé e murmurando: ‘Anjos fascistas!’. Há também aquele caso proverbial do mineirinho que chegou no Céu e pediu pra falar com ‘o Seu Jesus’, e de certa socialite paulista que, barrada no Céu, ameaçou reclamar ao marido, que dizia aos berros ser ‘presidente das Casas Bahia’. De brasileiro quero distância, e nem do espelho chego muito perto”.
Fui à entrevista preparado para ser agressivo. Eu havia me convencido de que qualquer coisa era melhor do que mostrar a Francis o quanto eu o admirava. Era melhor ser insolente, cínico; de modo que ri e lhe dei os parabéns por ter deixado de pintar o cabelo de acaju. Francis resmungou alto, me olhou com desprezo e respondeu: “Não era acaju, era burgundi. Waaaal, se eu tenho que dizer a diferença...”.
Não digo, mas Francis está bem, aparentando quarenta anos ou menos, corado e em forma. Sei por conhecidos que está casado com a escritora americana Mary McCarthy (que estava na quadra jogando ao seu lado quando cheguei), e que vivem juntos nessa grande casa de tijolos numa das mais bonitas cidades do Paraíso. O rumor é que brigam muito, bebem muito, escrevem muito e viajam muito. “Todos os lugares da Terra são detestáveis, pensando bem”, Francis diz. “São bons se você está bem. E eu nunca estava bem, logo, ergo, etc. Mas aqui, você respira o ar e parece que é champanhe”. Pergunto se é verdade que ele e Mary só estão esperando que Jaguar morra para adotá-lo como filho retardado, “mongolóide”, digo, e Francis dá uma gargalhada surpreendentemente contagiosa. Pela primeira vez, parece olhar para mim de fato.
“Ah, você é um desses?”, diz, estendendo a mão para perto do meu rosto. Antes que eu pergunte “desses o quê?”, Francis diz: “Está vendo o fiozinho azul claro? Sai da tua testa e vem pra minha? Quase não dá pra ver, olha bem”. Com dificuldade percebo um fiozinho, mais fino que uma linha de costura, preso nos dedos gorduchos de Paulo Francis. Ele explica:
“Não havendo nascimento no Paraíso, não há pais nem filhos, não há linhagens dinásticas. O modo com que a aristocracia se transmite é puramente intelectual, espiritual. Os autores que você leu são aqui como os seus antepassados. Se você leu Shakespeare a ponto de ser modificado internamente pela leitura, a ponto de assimilar a leitura, organicamente, Shakespeare é considerado seu antepassado, você pertence à mesma família que ele. Um aristocrata, aqui, é alguém que tem uma longa e antiga ‘família’, com a qual ele é ligado por um fio azul como este. Por este fio aqui eu sei que você me leu, que eu influenciei você de alguma forma”.
É verdade, mas sinto vergonha de confessar. Ele solta o fio e bebe suco de maçã numa caixinha, me oferecendo outra, que eu aceito. A vergonha também me impede de perguntar se ele sabe que há muitas pessoas influenciadas por ele na Terra, a maioria das quais escritores de Internet, blogueiros. Pessoas que cresceram lendo as colunas dele nos jornais, que leram a respeito de coisas tão díspares quanto Auden ou Wagner ou filmes de Fritz Lang pela primeira vez nas colunas dele. E que se sentem gratas a ele, de alguma forma.
Ao invés disso, pergunto se ele sabe do último escândalo do governo. Francis suspira e diz: “Não, qual a suburbanada agora?” Conto para ele do Mensalão, José Dirceu, Genoíno, Lula. (Digo essas coisas mas o fio azul que sai da minha testa e vai para a dele está me incomodando, apesar de quase invisível. Imagino que está me fazendo cosquinha.)
Mas Francis não parece interessado. Diz: “Gastei a vida com essas bobagens, tarde demais percebi que devia ter me dedicado exclusivamente a Matisse, Wagner. Prefiro inclusive falar de sorvete de fruta. Existem duas mil variedades de sorvete de fruta aqui. Você gosta de sorvete de fruta? Uma coisa que vou dizer, no entanto, é que a estrutura do PT, as caras lombrosianas dessas pessoas e o comportamento, digamos, silvícola, aborígene, lembram tremendamente o Inferno. Mas a eternidade é muito curta pra gastar com o PT”.
Eu: “Você culpa Joel Rennó, então presidente da Petrobrás, que entrou com um processo de US$100 milhões contra você por difamação, pela sua morte? Quando você morreu, todos diziam que essa era a causa”.
Francis: “Pfui. Olha aqui, Samuel Johnson já notava, a propósito de Milton e um certo Salmasius, que sempre se diz que polemistas foram mortos por suas últimas disputas. Rennó é uma besta, e não quero que pensem que tamanha besta teria uma importância dessas na minha vida, ou na minha morte. Me tirou o sono durante uma semana, no máximo”.
Eu: “Como é a morte, o processo todo? Sentiu medo, antes, depois?”
Francis: “Medo algum. Sempre me imaginei um covarde físico (e, daí, alguns espetáculos de machice excessiva no meu passado. Um covarde humilhado é uma fera) e um valente moral. Sou forçado a uma revisão, e me surpreendo de não tê-la feito antes. Afinal, sempre que me vi frente a frente à dor, não reagi mal. Morrer foi ‘um pedaço de bolo’, na tradução sublime dos legendadores de cinema. Quando morri vim ver Capitão Blood no Paraíso, concluindo corretamente que nada poderia fazer, considerando ridículas cenas de cemitério. Três primas minhas inclusive choravam sempre abraçadas pelas cabeças, em voz alta, em movimento permanente, o que me lembrava baile de carnaval. Conhecidos distantes meus soltando ranho pelo nariz, pela boca”.
Eu: “Você fez muitos amigos por aqui? Aqueles jogando tênis agora pouco, eram Greta Garbo, John Gilbert?”.
Francis: “Sim, mas não são tantos os amigos reais. Afinal, as coisas não mudaram muito. No Rio eu via com freqüência umas vinte pessoas (no máximo: estou incluindo as obrigatórias). Aqui, a mesma coisa. A diferença é que no Rio, se você quiser, faz mil amigos. No Paraíso, não. Os grupos são pequenos e se cortam mutuamente. Moro duas casas abaixo de um cara que já encontrei em várias reuniões. Nunca ocorreu a ele ou a mim tomarmos um drinque na casa um do outro. Ninguém toca a campainha da tua casa sem aviso prévio e muito claro. Ninguém puxa conversa com você se você está lendo. Ninguém lê o que está em cima da tua mesa. Prefiro assim. Não é a toa que Garbo mora aqui”.
Eu: “Se há poucos brasileiros aqui, presumo que estão no Inferno. A maior parte das pessoas no Céu vem de qual nacionalidade?”.
Francis: “Bom, Sartre, que não veio exatamente pro Paraíso, digamos assim, mas para um lugar antípoda, escreveu que em nenhum outro lugar do universo se vê tanto a simultaneidade da vida das pessoas quanto aqui. True, true. Olhe à sua volta e não vai ver duas pessoas da mesma nacionalidade. Um dos problemas de se viver no além é a perda da identidade nacional e do status em que temos no nosso mundo, seja este qual for. Do status sinto uma certa falta. Eu já havia me habituado a encontrar sempre mesa nos restaurantes, mesmo quando tinha vinte pessoas esperando a vez. Aqui, os anjos passam antes. É cruel. Mas identidade nacional? Aqui ninguém tem. Meus quatro amigos aqui nessa rua eram em vida todos de diferentes países. Dou-llhes dicas sobre o que devem fazer para se divertir no Paraíso. Gostaria de aconselhar a um deles, o mais simpático, a não usar certas camisas e abolir certas expressões como ‘lúdico’ ou ‘agregar valores’, que aqui caem mal. Mas ele é do Texas e John Wayne sempre me meteu um certo medo”.
Uma mulher usando roupa branca de tênis sai da casa e vem na nossa direção. Percebo que é Mary McCarthy, jovem e muito bonita, os braços queimados de sol, dourados, contrastando com a roupa, o cabelo castanho preso em duas tranças. Ela pára com a mão no ombro de Francis e pergunta se vou ficar para o almoço. Francis diz “Claro que fica”. Explico que não posso, que ainda estou vivo, que estou só sonhando – e em poucos minutos vou ter que acordar. Francis diz: “Ah, é verdade. Sempre me esqueço”, e continuamos com a entrevista.
Francis: “Continuando no pessoal, há as livrarias. Sempre que entro numa grande livraria aqui entendo porque eu nunca poderia viver de novo nesse mundo jeca de vocês. Quero saber de tudo que estão escrevendo, mesmo que noventa por cento não me interessem da superpornografia à lógica matemática. A disponibilidade cultural do Paraíso chega a ser indecente. Pense no que você quer. Aqui tem em triplo. Bernard Shaw escreveu quarenta e seis peças desde que morreu em 1950. Quarenta e seis. Isso fora volumes e volumes de cartas, romances e crítica de música. Não há equivalente na Terra, não há equivalente possível, para a produtividade do espírito humano desgarrado do corpo. A pior das músicas que Mozart compôs depois de morto é melhor do que a Sinfonia Júpiter”.
Eu: “E a sua própria produtividade? Tem escrito peças, romances?”.
Francis: “Peças, romances, you name it. Terminei a trilogia dos romances ‘Cabeça’ com ‘Cabeça de Picareta’, no qual o protagonista Hugo Mann morre e é encarregado de seqüestrar Trotsky do Inferno. Sabotado pelas próprias dúvidas, falha, é claro. O livro foi recebido com entusiasmo ‘contido’, digamos assim, mas Philip Rahv escreveu um longo ensaio sobre ele na Partisan Review daqui o colocando nos cornos na lua e, dizem, Edmund Wilson leu e gostou, comparando (favoravelmente) aos romances post-mortem de Arthur Koestler. No momento estou terminando uma peça sobre a morte de Freud, na qual o grande ator francês Gérard Philippe vai interpretar o cachorro salsicha de Jung. Fora isso, escrevo uma coluna mensal para um jornal daqui, na qual despejo minha acídia que, mesmo aqui, perdura. Este mês xinguei Santo Estevão de deficiente mental. Fico feliz de dizer que ele me deu uma botinada”.
Nesse ponto Mary McCarthy, Garbo e Gilbert aparecem no terraço – Gilbert plantando bananeira, balançando no galho dum pessegueiro etc., enquanto Garbo, de olho roxo das boladas que levou de Francis, ri do amante. Percebo que o almoço está pronto e me levanto. Francis se levanta também – minha cabeça dá no ombro dele. Agradeço pela entrevista.
“De nada, volte sempre. Brasileiro agradável é mais raro do que espanhol humilde”. Francis ri da própria piada, eu rio também.
Estou quase saindo pelo portão quando ouço sua voz vindo de longe:
“Ah, ô, diz também que não desdigo nada do que disse daquele Joel Rennó. Estou vendo tudo que ele faz daqui. Ok?”
“Ok!”
“Sei dos podres todos. Ora, outro dia ele tirou caquinha do nariz e comeu que eu vi. ‘Limpou o salão’, como se dizia na minha infância. Foi disgusting. E foi ele que matou Marilyn Monroe. Publica isso que eu quero ver”.
“Publico!”, eu grito por cima da sebe.
“E tem mais, Lula matou Jimmy Hoffa”. Nesse ponto a voz já vem tão distante que fico em dúvida de que ouvi isso mesmo. Lula matou Jimmy Hoffa? Estou na rua de grama, sinto que estou acordando. Mas Francis continua: “E enterrou em Osasco. Como você acha que Lula perdeu o dedo? Cavem bem fundo no shop-ping Osasco, bem debaixo do Habib’s, abram a mandíbula de Jimmy Hoffa e vão encontrar um dedo mindinho lá”.
E depois ouço uma gargalhada, feita só de chiados e sons nasais, que assustam as borboletas da sebe e as fazem pular, uma a uma, para o céu inacreditavelmente azul.
* Alexandre Soares Silva, 36, é escritor e tradutor. Autor de “A Coisa Não-Deus” (Beca, 2000), “Morte e Vida Celestina” (Candide, 2004), além de dois livros de aventuras para adolescentes, “A Origem dos Irmãos Coyote” e “Na Torre do Tombo” (Global). Também participou das coletâneas “Wunderblogs.com” (Barracuda, 2004) e “A Visita” (Barracuda, no prelo).
(Publicado originalmente na edição 34, de outubro de 2005, da revista Semana 3)