Monday, March 20, 2006

Alexandre Soares Silva, fevereiro de 2005

O melhor de Lord Ass



* Personagens esféricos são uma invenção de romancistas; na vida real todo mundo é plano. Quando há uma exceção, e alguém nasce psicologicamente esférico, as pessoas ficam tão espantadas que escrevem livros sobre ele. Ver Samuel Johnson, Lincoln, Churchill.

* Quem andou de jet-ski jamais fará contribuição alguma para a humanidade.

* Há pessoas tão más que até mesmo seus impulsos bons são ruins. Assim que resolvem ajudar a humanidade, a primeira coisa que fazem é odiar quem acham que não ajuda a humanidade.

* Há filmes que já começam emocionados. Você nem precisa ficar emocionado, porque o filme já está emocionado por você.

* Eis porque a Monarquia caiu – as pessoas queriam que todas as formas de governo fossem um pouquinho mais chatas. O grande motor da história é a propensão das pessoas chatas a chatificar tudo.

* Toda a literatura latino-americana é especialmente amada por idiotas, que evitam a literatura anglo-saxã por instinto e política. Digamos que demonstram uma prontidão para ler Cortázar que não costumam ter para ler Dickens.

* As pessoas sempre falam do clima de liberdade, imaginação, humor e aventura que havia tomado conta dos estudantes em 68, mas ninguém fala da liberdade, imaginação, humor e aventura dos policiais da CRS dando pancadas nos estudantes. É preciso ser muito sem humor para não ver o lado cômico da repressão policial, e a possibilidade nunca efetivada de dar uma boa cacetada na cabeça de Jean-Luc Godard justifica todo o governo De Gaulle.

* Quem perde a religião e a substitui pela arte corre esses riscos, de ser a velhinha beata e mofadinha da Grande Arte, distribuindo imagens de Kafka crucificado e rezando a Ismail Kadaré para ver curada uma sentença tortinha.

* Quando uma mulher está fazendo força para ser mulher ela se limita a falar de, e pensar em, relacionamentos fracassados, abortos, e vários tipos de sentimentos asquerosamente delicados. A feminilidade, se é um estado a ser alcançado, é notavelmente parecida com a chatice.

* Os puritanos são xingados por todos os lados, mas eu acho uma gente legalzinha. Queriam reprimir o teatro. E se dependesse deles eu nunca teria visto o pinto de Harvey Keitel, nem aqueles caras todos mijando nos filmes de Pasolini.

* A função da crítica é me divertir falando de livros. Não tem problema que esteja errada, se estiver errada divertidamente; mas nunca deveria estar certa, se estiver certa chatamente.

* Pensei em dizer que todos os atletas são intelectuais frustrados. Imagine uma roda de gente discutindo Kant. Daí chega o atleta. “Diz alguma coisa sobre Kant”, dizem para o atleta. “Não consigo, mas em compensação eu pulo alto pra caramba”. E imediatamente começa a dar pulinhos no mesmo lugar.

* A preguiça resolve problemas. Quanto estou cheio de coisas pra fazer, deito no chão com um livro e fico assim durante dois ou três dias. De vez em quando paro pra ouvir Gilbert e Sullivan. Não falha: algumas coisas se resolveram sozinhas, outras chegaram a uma crise que já não precisa da minha intervenção, e quase sempre algum amigo meu, que havia pedido um favor, deixou de se considerar amigo meu, e portanto o favor não precisa mais ser feito. Tente, old boy.

* O prazer de não ler jornal. Alguém pergunta pra você: “Nossa, você viu esse escândalo do Repolhinho?” E você não viu, não sabe de nada, porque acordou e foi diretamente ler Sêneca. Ah, o prazer de ignorar completamente o escândalo do Repolhinho.

* Histórias de detetives são uma forma de história de caça, e histórias de caça foram provavelmente o primeiro tipo de história que as pessoas contavam umas às outras, e provavelmente serão as últimas também. Foi só no século dezenove que os escritores sérios deixaram de escrever sobre a emoção da caçada para escrever sobre proxenetas sifilíticos que se matam no final. É uma moda, vai passar.

* Meu vegetarianismo não hesitaria em comer os braços gordos de um camelô, os tríceps de uma cobradora de ônibus ou a queixada de um fiscal da prefeitura. Meu vegetarianismo só poupa o coitadinho do boi e o inofensivo frango.

* Já há tão poucas pessoas livrescas. As pessoas deviam ser ainda mais livrescas. Por mais que uma pessoa leia, devia ler mais e viver menos. Não há leitura que não seja interrompida pela vida, que é uma senhora desgrenhada que baba.

* É sempre fascinante ver os comentários de centenas de jornalistas de esquerda ridicularizando a idéia de que exista um número excessivo de jornalistas de esquerda.

* Lula foi eleito pelo mesmo motivo de que existem pornôs em que donas de casa fazem sexo com encanadores: paixão pelo Homem do Povo.

* Todas as pessoas que usam as palavras confundir, liberdade e libertinagem na mesma sentença deveriam levar um tiro no joelho; exceto eu, que acabei de fazê-lo por motivos didáticos; mas todos os outros, sim.

* Ser acadêmico é para sempre ouvir os recados de grandes homens pela boca de homens menores. “Dostoiévski telefonou e disse que...”, diz Bakhtin.

* (sobre a universidade) E no entanto a idéia, em si, de um homem inteligente conversando sobre livros com outros homens inteligentes, num lugar agradável, longe de bancos, borracharias e despachantes, é uma das imagens da felicidade na terra. A idéia da universidade é essa, é só isso: um lugar longe de telefones, longe de contas a pagar, longe das banalidades grotescas da vida prática, onde homens inteligentes possam conversar sobre livros. De preferência em prédios neoclássicos onde a hera cresce... Que os prédios tenham ficado feios e que a conversa tenha se tornado estúpida é uma das muitas tragédias do século vinte - como o fim dos monóculos e da era clássica dos whodunits.

* É estranho, também não sei explicar, mas continuo escrevendo aquilo que eu penso, e não aquilo que você pensa.

(Publicado originalmente na edição 28, de fevereiro de 2005, da revista Semana 3)

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