Alexandre Soares Silva, junho de 2005
Esquerda? Direita? Muito pelo contrário!
Quando vejo alguém dizer que não é de esquerda nem de direita, tenho a mesma reação de quando encontro um carioca: olho para os pés dele em pânico, com medo que comece a sambar.
Não é justo, porque há cariocas que não sambam, e que têm menos malemolência e ginga (Jesus, ginga) que eu – ou mesmo que Ingmar Bergman num dia especialmente reflexivo. Da mesma forma, há quem diga que não é de esquerda nem de direita por motivos perfeitamente válidos, e que não são cabeças-ocas de forma alguma. Mesmo assim, quando encontro cariocas ou pessoas que se orgulham de não ser nem de esquerda nem de direita, minha reação é a de dar três passos para trás com medo de me ver no meio de um pagode. “Não sou nem de direita nem de esquerda, muito pelo contrário! Epa!” – e imediatamente levanta os dois indicadores em direção ao teto e começa a sambar.
Algumas pessoas têm bons motivos para não ser nem de esquerda nem de direita. Entre eles o melhor motivo é o de não se interessar por essas coisas. Ser infantil demais, alienado demais; demasiadamente desinteressado nos possíveis modos de exploração de manganês e bauxita, e realmente não querendo saber como o Estado ou as empresas se arranjam para fazer essas coisas. Estão certos, eu queria ser assim. Até sou, um pouco. É melhor dedicar a vida à leitura dos contos de Tchecov, ou à tentativa de ouvir cada som jamais produzido pela garganta de Dietrich Fischer-Dieskau. Essas pessoas têm toda a minha simpatia.
Assim também os cristãos que usam o “meu Reino não é deste mundo” como justificativa para não se interessar pelo caderno de política dos jornais: estão certos, estão certos. Para um cristão, dar uma sugestão sobre como o Estado deve se organizar é mais ou menos como um hóspede sugerir onde um quadro deve ser pendurado na casa em que está de visita: ele pode dar a sugestão, é claro, quando perguntado; mas nunca com muito empenho ou ênfase. Em outras palavras, um cristão pode ser de esquerda ou de direita, mas nunca muito empolgadamente. As questões de sua própria casa, no céu ou no inferno, geralmente o ocupam muito mais.
Essas são as boas razões para não ser nem de esquerda nem de direita: infantilidade, alienação, desinteresse; ou a melhor de todas, que não entra em conflito com as outras: um interesse maior em Outras Coisas. Mas sou muito mesquinho e costumo atribuir motivos mais tolos. Por mais que a esquerda diga o contrário, é muito pequeno o número de pessoas genuinamente alienadas no mundo – em toda a minha vida, acho que só conheci duas ou três. A leitura de editoriais é uma tentação tão grande quanto o jogo, a bebida, as drogas, as prostitutas. Não, é muito pior: não conheço muita gente viciada em jogo, bebida, drogas ou prostitutas, mas quase todo mundo que eu conheço tem um interessezinho meio doentio em política e atualidades. Quanto aos cristãos, são mais raros ainda, numa época em que o islamismo, o budismo, a wicca e o espiritismo recebem todo o respeito e na qual é muito mais fácil encontrar um tarô com motivos tirados dos índios sioux do que uma simples imagenzinha de santo.
De modo que quando encontro alguém que diz que não é de direita nem de esquerda, quase nunca acho que se trata dessa que é, afinal, a mais rara alma de todas, o Alienado Genuíno. Não, a minha experiência é que se trata de um tipo muito mais comum: alguém que se acha complexo demais para ser descrito de modo tão simplista. Esse é o seu orgulho, ser Complexo Demais Para Ser Rotulado. Ele tem opiniões políticas, e muitas. Ele se interessa pelo assunto: não está nem abaixo, nem acima dele. O que há é que ele acha que o conjunto das suas opiniões é tão pessoal, tão complexo, que Esquerda e Direita não fazem sentido para ele, e toda uma nova categoria deveria ser inventada para acomodá-lo.
Mas aposto uma coisa, no entanto: o Homem Complexo Demais, se é sincero, e se não nega que seja de esquerda ou de direita apenas por covardia ou estratégia, é alguém que simplesmente se conhece pouco, e que nunca parou para perceber que todas as suas opiniões apontam claramente ou para a esquerda, ou para a direita – e mais freqüentemente para a esquerda. Suas opiniões sobre o aborto, a eutanásia, a legalização das drogas, o papel do Estado na economia e a influência da religião na vida pública são exatamente aquelas atribuidas tradicionalmente à esquerda, ou pelo menos a maioria delas; mas de esquerda, ele? Nah, não, nunca.
Uma pequena parte da esquerda-que-nega-ser-esquerda faz isso conscientemente, por covardia ou por estratégia. Pretendendo estar livres para atacar os dois lados, atacam um lado com frequência e o outro uma vez a cada dois anos. Pretendendo estar sujeitos aos ataques dos dois lados, por serem supostamente independentes, na prática estão livres de qualquer ataque – jurando à esquerda que não são de direita e à direita que não são de esquerda.
Mas esses são poucos. A maior parte faz isso sem sequer perceber que é de esquerda. Essa é a Nova Esquerda, a Esquerda que Não é Esquerda. Como esquerda seriam atacáveis, mas como simples representantes do que consideram ser bons sentimentos, não são atacáveis de forma alguma. E cada vez que encontro um tipo desses, realmente tenho muito medo que ele comece a sambar de tanta alegria inzoneira.
(Publicado originalmente na edição 31, de junho de 2005, da revista Semana 3)
Quando vejo alguém dizer que não é de esquerda nem de direita, tenho a mesma reação de quando encontro um carioca: olho para os pés dele em pânico, com medo que comece a sambar.
Não é justo, porque há cariocas que não sambam, e que têm menos malemolência e ginga (Jesus, ginga) que eu – ou mesmo que Ingmar Bergman num dia especialmente reflexivo. Da mesma forma, há quem diga que não é de esquerda nem de direita por motivos perfeitamente válidos, e que não são cabeças-ocas de forma alguma. Mesmo assim, quando encontro cariocas ou pessoas que se orgulham de não ser nem de esquerda nem de direita, minha reação é a de dar três passos para trás com medo de me ver no meio de um pagode. “Não sou nem de direita nem de esquerda, muito pelo contrário! Epa!” – e imediatamente levanta os dois indicadores em direção ao teto e começa a sambar.
Algumas pessoas têm bons motivos para não ser nem de esquerda nem de direita. Entre eles o melhor motivo é o de não se interessar por essas coisas. Ser infantil demais, alienado demais; demasiadamente desinteressado nos possíveis modos de exploração de manganês e bauxita, e realmente não querendo saber como o Estado ou as empresas se arranjam para fazer essas coisas. Estão certos, eu queria ser assim. Até sou, um pouco. É melhor dedicar a vida à leitura dos contos de Tchecov, ou à tentativa de ouvir cada som jamais produzido pela garganta de Dietrich Fischer-Dieskau. Essas pessoas têm toda a minha simpatia.
Assim também os cristãos que usam o “meu Reino não é deste mundo” como justificativa para não se interessar pelo caderno de política dos jornais: estão certos, estão certos. Para um cristão, dar uma sugestão sobre como o Estado deve se organizar é mais ou menos como um hóspede sugerir onde um quadro deve ser pendurado na casa em que está de visita: ele pode dar a sugestão, é claro, quando perguntado; mas nunca com muito empenho ou ênfase. Em outras palavras, um cristão pode ser de esquerda ou de direita, mas nunca muito empolgadamente. As questões de sua própria casa, no céu ou no inferno, geralmente o ocupam muito mais.
Essas são as boas razões para não ser nem de esquerda nem de direita: infantilidade, alienação, desinteresse; ou a melhor de todas, que não entra em conflito com as outras: um interesse maior em Outras Coisas. Mas sou muito mesquinho e costumo atribuir motivos mais tolos. Por mais que a esquerda diga o contrário, é muito pequeno o número de pessoas genuinamente alienadas no mundo – em toda a minha vida, acho que só conheci duas ou três. A leitura de editoriais é uma tentação tão grande quanto o jogo, a bebida, as drogas, as prostitutas. Não, é muito pior: não conheço muita gente viciada em jogo, bebida, drogas ou prostitutas, mas quase todo mundo que eu conheço tem um interessezinho meio doentio em política e atualidades. Quanto aos cristãos, são mais raros ainda, numa época em que o islamismo, o budismo, a wicca e o espiritismo recebem todo o respeito e na qual é muito mais fácil encontrar um tarô com motivos tirados dos índios sioux do que uma simples imagenzinha de santo.
De modo que quando encontro alguém que diz que não é de direita nem de esquerda, quase nunca acho que se trata dessa que é, afinal, a mais rara alma de todas, o Alienado Genuíno. Não, a minha experiência é que se trata de um tipo muito mais comum: alguém que se acha complexo demais para ser descrito de modo tão simplista. Esse é o seu orgulho, ser Complexo Demais Para Ser Rotulado. Ele tem opiniões políticas, e muitas. Ele se interessa pelo assunto: não está nem abaixo, nem acima dele. O que há é que ele acha que o conjunto das suas opiniões é tão pessoal, tão complexo, que Esquerda e Direita não fazem sentido para ele, e toda uma nova categoria deveria ser inventada para acomodá-lo.
Mas aposto uma coisa, no entanto: o Homem Complexo Demais, se é sincero, e se não nega que seja de esquerda ou de direita apenas por covardia ou estratégia, é alguém que simplesmente se conhece pouco, e que nunca parou para perceber que todas as suas opiniões apontam claramente ou para a esquerda, ou para a direita – e mais freqüentemente para a esquerda. Suas opiniões sobre o aborto, a eutanásia, a legalização das drogas, o papel do Estado na economia e a influência da religião na vida pública são exatamente aquelas atribuidas tradicionalmente à esquerda, ou pelo menos a maioria delas; mas de esquerda, ele? Nah, não, nunca.
Uma pequena parte da esquerda-que-nega-ser-esquerda faz isso conscientemente, por covardia ou por estratégia. Pretendendo estar livres para atacar os dois lados, atacam um lado com frequência e o outro uma vez a cada dois anos. Pretendendo estar sujeitos aos ataques dos dois lados, por serem supostamente independentes, na prática estão livres de qualquer ataque – jurando à esquerda que não são de direita e à direita que não são de esquerda.
Mas esses são poucos. A maior parte faz isso sem sequer perceber que é de esquerda. Essa é a Nova Esquerda, a Esquerda que Não é Esquerda. Como esquerda seriam atacáveis, mas como simples representantes do que consideram ser bons sentimentos, não são atacáveis de forma alguma. E cada vez que encontro um tipo desses, realmente tenho muito medo que ele comece a sambar de tanta alegria inzoneira.
(Publicado originalmente na edição 31, de junho de 2005, da revista Semana 3)
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