Alexandre Soares Silva, julho de 2005
Em defesa da intolerância
Uma boa regra na vida, que me ocorreu outro dia – enquanto eu subia uma escada comendo lentamente uma banana, por sinal – é não acusar quem tem uma opinião diferente da sua de sofrer de um dos três males, Canalhice, Desequilíbrio Mental ou Idiotice. Sim, uma boa regra; e fiquei tão contente com ela que quis imediatamente voltar pra casa e escrever uma coluna reconhecendo que eu sei que há esquerdistas inteligentes, ateus emocionalmente maduros e comunistas não completamente canalhas. Minha recém-descoberta tolerância me embriagou um pouquinho – e, enquanto eu andava depressa pela avenida, senti uma vaga vontade de dançar a Dança da Tolerância, subindo em barraquinhas de camelôs, sapateando e cantando músicas de Gershwin.
Felizmente havia trânsito no caminho pra casa; digo “felizmente” porque o meu entusiasmo teve tempo de ir embora e, quando cheguei na frente do computador, acabei escrevendo um texto agradavelmente intolerante e reacionário, dizendo que cariocas não são seres humanos porque não usam camisa. Assim acabei me poupando de passar um grande vexame, que é o de exibir a própria tolerância como uma nova-rica esfregando um anel de diamante na cara de uma manicure. É preciso escondermos um pouco a nossa tolerância, e nos fingirmos um pouco de monstros – por elegância, apenas. E também é preciso lembrar que a tolerância é agradável e sábia, mas estilisticamente monótona.
Posso perdoar muita coisa, mas não que me tolerem. Se alguém me tolerar, deve pelo menos fazer muita força para esconder isso. O sorriso da tolerância alheia seria motivo para duelo, se ainda vivêssemos num mundo tão civilizado que admitisse duelos. Posso muito bem imaginar um aristocrata francês pré-Revolução jogando um copo de vinho no rosto de seu interlocutor, e explicando depois – “Canalha! Tolerou-me!...”.
Me deixem dizer com mais clareza o que defendo: tolerância, sim – dãã – mas uma tolerância escondida, uma tolerância subreptícia. O contato prolongado na Internet com vários defensores nominais da tolerância me deixou uma má impressão da própria palavra. Será preciso muita inteligência para perceber que os defensores excessivamente enfáticos de qualquer virtude são sempre criaturas suspeitas? Quando você vê alguém defendendo a tolerância, não imagina sempre que, quando vier a Revolução, vai ter que se esconder dele? E, principalmente – por que motivo a palavra Tolerância é sempre mencionada para calar a boca de alguém?
Como qualquer virtude, pratique, se der – mas, por favor, não faça estardalhaço. Pelo contrário – meu conselho, de graça para você, leitor gentil, leitor papalvo, leitor careca: se finja de intolerante, se finja de muito zangado com as idéias alheias. Xingue quem se opõe a você – não a sério, nunca a sério, mas xingue. Chute cadeiras, cuspa no chão, fique todo vermelho – embora mantendo interiormente uma secreta equanimidade. Isso não só é menos chato que um texto ostensivamente tolerante, é mais correto também, de um jeito moral: é como alguém que desse sempre esmola jurando que nunca dá esmola, que acha um absurdo.
Às vezes é inevitável sentirmos a tentação da tolerância ostensiva; principalmente quando encontramos manifestações de intolerância genuína, boçal. Mas essas vêm se tornando tão raras – a intolerância se envergonha tanto de si mesma, ultimamente, e se disfarça tanto de tolerância democrática e humanista e igualitária e blá blá blá – que quando encontramos alguém confessadamente intolerante deveríamos ficar pelo menos um pouco gratos pela honestidade dele. Mesmo assim, espiando certos debates em fóruns de discussão de gente de esquerda, por exemplo, e vendo como eles caracterizam qualquer conservador como alguém patologicamente indiferente aos sofrimentos dos pobres, ainda dá pra ficar um pouco chocado, e sair sem apreciar nem um pouco a honestidade de suas opiniões. Durante uns momentos chego a desejar que eles me estendessem a cortesia de achar que eu tenho sentimentos, sei lá, e que sinto pena, por exemplo, da florista cega em “Luzes da Ribalta” (embora, para dizer a verdade, não muita, e nem sempre). E sinto vontade também de nunca cometer o mesmo erro grosseiro. De deixar sempre claro que eu sei que uma pessoa pode ser socialista e não ser burra, por exemplo. Escrever longos textos sobre isso. Vê-los me cumprimentando pela minha tolerância bacaninha.
Mas, sabe – não. Me recuso a ceder à tentação da tolerância ostensiva. E chego agora à minha Regra Número Um: em qualquer bom texto a tolerância deve estar implícita, e nunca expressa. Um bom texto, o texto que eu considero ideal e que eu sei que nem sempre consigo fazer, é aquele que, defendendo a posição A, deixa explícito que desprezamos muito a posição B, ao mesmo tempo em que deixa implícito que não temos desprezo nenhum pelos defensores da posição B. O desprezo (fingido ou verdadeiro) pela opinião contrária não é necessário, claro – mas acho recomendável, estilisticamente falando, porque o texto fica mais divertido de ler. Esse é um ponto tão óbvio que nem acho que seja necessário defendê-lo. Mas o desprezo não deve nunca ser estendido ao defensor da posição que fingimos que achamos desprezível: queremos ser divertidos, mas não queremos ser boçais. Essa tolerância deve ser sutil, vindo escondida no meio de uns sarcasmozinhos.
É um balanço difícil de ser alcançado, reconheço: entre tolerância real, e secreta, e intolerância fingida e ostensiva. Mas leitores inteligentes deveriam ser capazes de perceber isso, nossa secreta tolerância charmosa, em qualquer bom texto – sem que tenhamos que cometer a grosseria espantosa de afirmá-la com clareza.
(Publicado originalmente na edição 32, de julho de 2005, da revista Semana 3)
Uma boa regra na vida, que me ocorreu outro dia – enquanto eu subia uma escada comendo lentamente uma banana, por sinal – é não acusar quem tem uma opinião diferente da sua de sofrer de um dos três males, Canalhice, Desequilíbrio Mental ou Idiotice. Sim, uma boa regra; e fiquei tão contente com ela que quis imediatamente voltar pra casa e escrever uma coluna reconhecendo que eu sei que há esquerdistas inteligentes, ateus emocionalmente maduros e comunistas não completamente canalhas. Minha recém-descoberta tolerância me embriagou um pouquinho – e, enquanto eu andava depressa pela avenida, senti uma vaga vontade de dançar a Dança da Tolerância, subindo em barraquinhas de camelôs, sapateando e cantando músicas de Gershwin.
Felizmente havia trânsito no caminho pra casa; digo “felizmente” porque o meu entusiasmo teve tempo de ir embora e, quando cheguei na frente do computador, acabei escrevendo um texto agradavelmente intolerante e reacionário, dizendo que cariocas não são seres humanos porque não usam camisa. Assim acabei me poupando de passar um grande vexame, que é o de exibir a própria tolerância como uma nova-rica esfregando um anel de diamante na cara de uma manicure. É preciso escondermos um pouco a nossa tolerância, e nos fingirmos um pouco de monstros – por elegância, apenas. E também é preciso lembrar que a tolerância é agradável e sábia, mas estilisticamente monótona.
Posso perdoar muita coisa, mas não que me tolerem. Se alguém me tolerar, deve pelo menos fazer muita força para esconder isso. O sorriso da tolerância alheia seria motivo para duelo, se ainda vivêssemos num mundo tão civilizado que admitisse duelos. Posso muito bem imaginar um aristocrata francês pré-Revolução jogando um copo de vinho no rosto de seu interlocutor, e explicando depois – “Canalha! Tolerou-me!...”.
Me deixem dizer com mais clareza o que defendo: tolerância, sim – dãã – mas uma tolerância escondida, uma tolerância subreptícia. O contato prolongado na Internet com vários defensores nominais da tolerância me deixou uma má impressão da própria palavra. Será preciso muita inteligência para perceber que os defensores excessivamente enfáticos de qualquer virtude são sempre criaturas suspeitas? Quando você vê alguém defendendo a tolerância, não imagina sempre que, quando vier a Revolução, vai ter que se esconder dele? E, principalmente – por que motivo a palavra Tolerância é sempre mencionada para calar a boca de alguém?
Como qualquer virtude, pratique, se der – mas, por favor, não faça estardalhaço. Pelo contrário – meu conselho, de graça para você, leitor gentil, leitor papalvo, leitor careca: se finja de intolerante, se finja de muito zangado com as idéias alheias. Xingue quem se opõe a você – não a sério, nunca a sério, mas xingue. Chute cadeiras, cuspa no chão, fique todo vermelho – embora mantendo interiormente uma secreta equanimidade. Isso não só é menos chato que um texto ostensivamente tolerante, é mais correto também, de um jeito moral: é como alguém que desse sempre esmola jurando que nunca dá esmola, que acha um absurdo.
Às vezes é inevitável sentirmos a tentação da tolerância ostensiva; principalmente quando encontramos manifestações de intolerância genuína, boçal. Mas essas vêm se tornando tão raras – a intolerância se envergonha tanto de si mesma, ultimamente, e se disfarça tanto de tolerância democrática e humanista e igualitária e blá blá blá – que quando encontramos alguém confessadamente intolerante deveríamos ficar pelo menos um pouco gratos pela honestidade dele. Mesmo assim, espiando certos debates em fóruns de discussão de gente de esquerda, por exemplo, e vendo como eles caracterizam qualquer conservador como alguém patologicamente indiferente aos sofrimentos dos pobres, ainda dá pra ficar um pouco chocado, e sair sem apreciar nem um pouco a honestidade de suas opiniões. Durante uns momentos chego a desejar que eles me estendessem a cortesia de achar que eu tenho sentimentos, sei lá, e que sinto pena, por exemplo, da florista cega em “Luzes da Ribalta” (embora, para dizer a verdade, não muita, e nem sempre). E sinto vontade também de nunca cometer o mesmo erro grosseiro. De deixar sempre claro que eu sei que uma pessoa pode ser socialista e não ser burra, por exemplo. Escrever longos textos sobre isso. Vê-los me cumprimentando pela minha tolerância bacaninha.
Mas, sabe – não. Me recuso a ceder à tentação da tolerância ostensiva. E chego agora à minha Regra Número Um: em qualquer bom texto a tolerância deve estar implícita, e nunca expressa. Um bom texto, o texto que eu considero ideal e que eu sei que nem sempre consigo fazer, é aquele que, defendendo a posição A, deixa explícito que desprezamos muito a posição B, ao mesmo tempo em que deixa implícito que não temos desprezo nenhum pelos defensores da posição B. O desprezo (fingido ou verdadeiro) pela opinião contrária não é necessário, claro – mas acho recomendável, estilisticamente falando, porque o texto fica mais divertido de ler. Esse é um ponto tão óbvio que nem acho que seja necessário defendê-lo. Mas o desprezo não deve nunca ser estendido ao defensor da posição que fingimos que achamos desprezível: queremos ser divertidos, mas não queremos ser boçais. Essa tolerância deve ser sutil, vindo escondida no meio de uns sarcasmozinhos.
É um balanço difícil de ser alcançado, reconheço: entre tolerância real, e secreta, e intolerância fingida e ostensiva. Mas leitores inteligentes deveriam ser capazes de perceber isso, nossa secreta tolerância charmosa, em qualquer bom texto – sem que tenhamos que cometer a grosseria espantosa de afirmá-la com clareza.
(Publicado originalmente na edição 32, de julho de 2005, da revista Semana 3)
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