Monday, March 20, 2006

Alexandre Soares Silva, set/out/nov de 2004

Ai, Creuza



Por que é que tantos escritores, tão logo lhes põem um microfone na boca, viram tamanhas bestas solenes? Fazem uma cara seriona de meter medo, e falam tão empolado que parecem engenheiros, cartolas de futebol, presidentes do Rotary Club.

“Escrever é um ato de liberdade”, disse numa entrevista o escritor carioca J.P.Cuenca; e imagino que ao chegar em casa deve ter se dado um tapão na testa por não ter dito que “escrever é um exercício de liberdade” (“Droga, eu devia ter dito que escrever é um ‘exercício de liberdade’!”).

Lygia Fagundes Telles: “Eu não quero confundir, eu quero denunciar. Estou tentando delatar as feridas do meu país.” (Ugh.) E mais adiante, na mesma entrevista: “Uma vez, um homem, que nunca vi na minha vida, ligou aqui para casa e disse que leu uma passagem de "A Disciplina do Amor" e resolveu desistir de se matar. É nesse tipo de cura que eu acredito.” É um problema quando uma pessoa começa realmente a acreditar nessas coisas que lhe dizem. Se eu me matar algum dia, antes telefono para a Lygia Fagundes Telles e digo que é por causa dos livros dela.

Fernando Bonassi: “Eu espero, com a minha arte, que as pessoas transem melhor, sejam menos racistas, percebam que se não distribuírem a renda serão assassinadas na esquina segurando seus Rolex.” Good God, se eu tivesse dito uma frase tão constrangedora uma vez na vida eu quereria morrer - e acredito que nem mesmo a leitura de “A Disciplina do Amor”, da Sra. Lygia Fagundes Telles, me demoveria da idéia. Mais de Bonassi, que aliás foi gentil uma vez comigo, colocando um romance meu numa lista dos cinco melhores romances do ano 2000 que saiu na revista TRIP (retribuo ficando enojado com sua entrevista): “O que eu acho que a gente pode fazer com a literatura é dar dignidade à vida das pessoas.” Não, meu filho, não, faz isso não. Não me dá dignidade não que eu vou gastar tudo em pinga.

O sujeito realmente se vê saindo por aí distribuindo dignidade aos outros. “Toma, toma dignidade! Para o senhor também, meu bom velho!” Tento imaginar como deve ser pensar em si mesmo nessa forma, como um Distribuidor de Dignidades. Deve ser bom. Mas eu só quero ler um livro – não quero que me dêem dignidade, acho uma insolência.

Fico me perguntando se o problema é comigo e com meus amigos – porque nenhum de nós seria capaz de dizer sem rir essa frase que Fernando Bonassi diz todo sério:
ÉPOCA – Você acha que só se escreve por desespero?
Bonassi – A melhor literatura, sim. Dostoiévski, Camus, Graciliano Ramos, gente que escreveu com as vísceras, com uma originalidade insuportável.

Marcelo Mirisola disse uma vez que escrevia com os colhões, e Bonassi acha que tem que ser com as vísceras; se os escritores brasileiros não sabem nem onde colocar a caneta, como esperam encher seus leitores de dignidade? E oh, a seriedade, a seriedade atroz de quem acha mesmo que tem que escrever “com as vísceras”, e diz isso sem nem uma risadinha de escárnio sequer. De quem acha que os seus livros ensinam a “transar melhor” (santo Deus!), “ser menos racista” e “distribuir renda” – e que além disso tudo ainda salvam a vida aos suicidas! Aos suicidas! Hemingway só se matou porque não pode ler “A Disciplina do Amor”, da Sra. Lygia Fagundes Telles, e...

- Menas, menas!

Oh, Ok.

Esses escritores devem achar que os leitores são uns idiotas, não? Que são indignos, e sujinhos, e nem sabem que correm o risco de serem assaltados na esquina “segurando os seus Rolex”, e que precisam que lhes digam como lavar atrás da orelha, não beber água estagnada, essas coisas todas? E que aliás vão todos se matar se não lerem a tempo “A Disciplina do Amor”? Ora, todos sabemos que alguns leitores até são assim, umas estrumeiras mesmo, mas não exageremos, não exageremos. Imaginar um velhinho sentado numa poltrona, pedaços de macarrão na barba rala, lendo um romance de Fernando Bonassi e ficando todo digno lá pela página 147 (imagine o velhinho ficando digno de repente, cara de metidão, levantando da poltrona ao som de um coro masculino soviético e sacudindo o punho contra uma sociedade injusta e desumana) diverte minhas noites, mas mesmo assim vou ter que pedir que parem um pouquinho, um pouquinho só, com essas empolações todas.

Alfredo Bosi: “Persigo a palavra poética, mais densa que a cotidiana.” Quando estava no colé-gio, qualquer frase desse tipo era recebida por um “ai, Creuza” que me parece que só faria bem ao sr. Alfredo Bosi. (Ou um tapão na nuca. Aliás uns tapões na nuca, bem distribuídos, resolveriam os problemas de grande parte da literatura brasileira.)

Oh, chega, chega. Os cadernos literários estão cheios de frases assim, com escritores gaúchos ou franceses ou chineses dizendo que querem “retratar a sociedade burguesa”, “a opressão feminina”, “o inferno da violência no coração de cada ser humano”, e todas essas bobajadas que um simples “ai, Creuza” resolveria.

Só digo que hoje me cansei de tanta empolação humana - dessa visão da literatura como uma coisa que o tio lá faz pra me ensinar a ser menos racista e não me matar e limpar atrás da orelha.

E ainda estranham que poucas pessoas leiam. Quem quer pagar para levar tamanha passada de mão na cabeça? Depois de ler os livros deles, eu, que não era racista (oh, juro), sou capaz de virar racista só de pirraça. Mas me matar não vou, é muito esforço só pra dar um susto numa senhora pomposa como Lygia Fagundes Telles.

(Publicado originalmente na edição 26, de set/out/nov de 2004, da revista Semana 3)

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Awesome text, mr. Soares Silva.

3:10 PM  

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