Alexandre Soares Silva, março de 2006
Sai de mim, Rubem Braga
A crônica é o mais cretino dos gêneros literários porque é o único que se dedica completamente à celebração do homem comum. Quando é um homem incomum celebrando o homem comum, temos uma crônica boa (se é que existem crônicas boas. Estou deduzindo a existência de uma crônica boa por raciocínio, mas nunca li nenhuma). Em outras palavras, temos um homem incomum ao mesmo tempo escrevendo bem e sendo demagógico; elogiando quem está abaixo dele e seu estilo de vida e lhe dando um tapinha sintático na cabeça.
Quando é um homem comum celebrando o homem comum, temos todas as outras crônicas que já vimos na vida, em todos os jornais. Olha lá o cronista sentado no banco da praça olhando os passarinhos. Os próprios passarinhos o odeiam. Se os passarinhos escrevessem crônicas, seriam textos xingando Rubem Braga de corno e Paulo Mendes Campos de sifilítico. A obsessão dos cronistas (e dos músicos populares) por passarinhos é estranhamente parecida com a obsessão de um autista por duas dezenas de clipes caídos no chão. Vai ler um livro!
Ou então está no banco da praça falando dos, meu Deus, “tipos de minha infância” pra quem chegar perto. O Zé Bolacha, que comia muita bolacha! A Maria da Sarna, que tinha sarna! O Juca da rua de cima, que era dono da bola de capotão! Quando leio as palavras “bola de capotão”, fecho o livro; mas tarde demais, porque já devia ter fechado na palavra “Zé”.
Por favor, não me fale dos seus joelhos esfolados de guri, nem da professora azeda que um dia (oh!) chorou na classe por causa da morte da filha dela, lhe ensinando assim que pessoas azedas também choram e lhe dando para sempre uma lição da fragilidade da vida! Nem da menina que fazia favores sexuais no terreno baldio atrás da marmoraria. E se for jornalista faz tempo (por oposição ao cronista-romancista e ao cronista-publicitário), chega de anedotas pitorescas sobre Adolpho Bloch, entremeadas por mais anedotas pitorescas sobre Adolpho Bloch, e passando por anedotas pitorescas sobre Samuel Wainer (“um dia ele tirou a meia e ih, rapaz, tava fedido. Aí o Filinto Muller disse “Ih, rapaz, cobre isso”. Daí eu fui trabalhar no Zero Hora”). Cronistas-jornalistas acreditam que Adolpho Bloch era uma espécie de Samuel Johnson, e que os menores detalhes de sua vida merecem ser recordados. Não, nem os fatos principais da vida de Adolpho Bloch merecem ser recordados. Quero esquecer quem foi Adolpho Bloch com a volúpia dos desesperados. E o primeiro que chamar Samuel Wainer de Samuca vai levar com a minha edição das Obras Completas de Carlyle no nariz.
O problema da crônica é o seu humanismo de tio chato que vem visitar no domingo. Ele vem e senta do lado do sobrinho, que está vendo tevê, e fica falando que quando era criança caçava passarinho com bodoque. Ok, tio. Você já disse isso no domingo passado. Mas o tio fica listando tipos de passarinho: “Ih, a gente caçava corruíra... pichochó... a gente caçava caboclinho... gaturamo, sanhaço... ”
Não que exista outro tipo de humanismo além do humanismo de tio chato, do humanismo gaturamo, sanhaço, corruíra, do humanismo leila diniz djavan chico, ai minha iáiá, meu nhonhô, saravá meu filho, o-meu-porquinho-da-índia-foi-a-minha-primeira-namorada; esse humanismo Irene-preta, Irene-boa, Irene-sempre-de-bom-humor. O humanismo é isso, uma coisa pequena e despretensiosa e jeitosinha. A princípio atrai simpatia porque é, bem, pequeno e despretensioso e jeitosinho. Não bate nele, está aí sentado no banco da praça sem fazer mal pra ninguém. Talvez tenha tido um derrame, está de boca aberta nesse sol faz uma hora já.
O humanismo é do que o Brasil é capaz de melhor, o ponto máximo que um espírito completamente identificado com o espírito nacional é capaz de atingir, nas duas vertentes Crônica e Bossa-nova. Não é ruim. Na França um humanismo muito parecido, só um pouco menos desmilinguido, deu Simenon, que é bom. Deu os filmes de Truffaut, que são mais do que bons. Mas não vai além disso, e na maior parte do tempo fica bem abaixo disso.
O Brasil não é capaz de ir além disso, e na maior parte do tempo fica bem abaixo disso. Vai ficar para sempre sentado num banco de praça, olhando os passarinhos com cara de bobo, falando da Maria Sarnenta da infância dele, que era meio retardadinha, coitada, e tinha olhos de traíra.
Podia ser pior? Podia. Há ideologias piores? Há, muito piores. Graças a Deus pela crônica e pela bossa-nova, porque o Brasil sem isso seria medonho demais para a contemplação humana. Pessoalmente nunca consigo ler Rubem Braga muito tempo sem sentir vontade de ler Nietzsche (não sou um grande fã de nenhum dos dois), mas reconheço uma coisa: associar o pensamento de Nietzsche ao nazismo é uma distorção do pensamento de Nietzsche, mas não uma distorção completa: alguma coisa nele (admiração pela crueldade, pelo “homem forte”) pode ir dar no nazismo se exagerado, ao mesmo tempo que nada na filosofia de Rubem Braga (passarinho é bonitinho, mulher é fascinante, banho de mar é gostoso) jamais vai dar em nada muito ruim, por mais exagerado que seja.
Sei disso. Mas chegamos a esse ponto? Temos que ter pena dos cronistas porque eles estão sentados quietinhos e pelo menos não são nazistas? É isso o melhor do que o espírito nacional é capaz de produzir, alguém que é bonzinho e não aderiu ao Partido Nazista porque perdeu a sunga na correnteza e está pedindo ajuda no Posto 6? Ok, entre um nazista e o tio Valdir olhando pombo na praça escolho o tio Valdir – mas só temos essas duas possibilidades?
Levanta desse banco, carioca! Pára de molestar o colibri! É impossível olhar para um cronista por muito tempo sem sentir uma vontade incontrolável de sacudi-lo freneticamente pelo colarinho.
(Publicado originalmente na edição 37, de março de 2006, da revista Semana 3)
A crônica é o mais cretino dos gêneros literários porque é o único que se dedica completamente à celebração do homem comum. Quando é um homem incomum celebrando o homem comum, temos uma crônica boa (se é que existem crônicas boas. Estou deduzindo a existência de uma crônica boa por raciocínio, mas nunca li nenhuma). Em outras palavras, temos um homem incomum ao mesmo tempo escrevendo bem e sendo demagógico; elogiando quem está abaixo dele e seu estilo de vida e lhe dando um tapinha sintático na cabeça.
Quando é um homem comum celebrando o homem comum, temos todas as outras crônicas que já vimos na vida, em todos os jornais. Olha lá o cronista sentado no banco da praça olhando os passarinhos. Os próprios passarinhos o odeiam. Se os passarinhos escrevessem crônicas, seriam textos xingando Rubem Braga de corno e Paulo Mendes Campos de sifilítico. A obsessão dos cronistas (e dos músicos populares) por passarinhos é estranhamente parecida com a obsessão de um autista por duas dezenas de clipes caídos no chão. Vai ler um livro!
Ou então está no banco da praça falando dos, meu Deus, “tipos de minha infância” pra quem chegar perto. O Zé Bolacha, que comia muita bolacha! A Maria da Sarna, que tinha sarna! O Juca da rua de cima, que era dono da bola de capotão! Quando leio as palavras “bola de capotão”, fecho o livro; mas tarde demais, porque já devia ter fechado na palavra “Zé”.
Por favor, não me fale dos seus joelhos esfolados de guri, nem da professora azeda que um dia (oh!) chorou na classe por causa da morte da filha dela, lhe ensinando assim que pessoas azedas também choram e lhe dando para sempre uma lição da fragilidade da vida! Nem da menina que fazia favores sexuais no terreno baldio atrás da marmoraria. E se for jornalista faz tempo (por oposição ao cronista-romancista e ao cronista-publicitário), chega de anedotas pitorescas sobre Adolpho Bloch, entremeadas por mais anedotas pitorescas sobre Adolpho Bloch, e passando por anedotas pitorescas sobre Samuel Wainer (“um dia ele tirou a meia e ih, rapaz, tava fedido. Aí o Filinto Muller disse “Ih, rapaz, cobre isso”. Daí eu fui trabalhar no Zero Hora”). Cronistas-jornalistas acreditam que Adolpho Bloch era uma espécie de Samuel Johnson, e que os menores detalhes de sua vida merecem ser recordados. Não, nem os fatos principais da vida de Adolpho Bloch merecem ser recordados. Quero esquecer quem foi Adolpho Bloch com a volúpia dos desesperados. E o primeiro que chamar Samuel Wainer de Samuca vai levar com a minha edição das Obras Completas de Carlyle no nariz.
O problema da crônica é o seu humanismo de tio chato que vem visitar no domingo. Ele vem e senta do lado do sobrinho, que está vendo tevê, e fica falando que quando era criança caçava passarinho com bodoque. Ok, tio. Você já disse isso no domingo passado. Mas o tio fica listando tipos de passarinho: “Ih, a gente caçava corruíra... pichochó... a gente caçava caboclinho... gaturamo, sanhaço... ”
Não que exista outro tipo de humanismo além do humanismo de tio chato, do humanismo gaturamo, sanhaço, corruíra, do humanismo leila diniz djavan chico, ai minha iáiá, meu nhonhô, saravá meu filho, o-meu-porquinho-da-índia-foi-a-minha-primeira-namorada; esse humanismo Irene-preta, Irene-boa, Irene-sempre-de-bom-humor. O humanismo é isso, uma coisa pequena e despretensiosa e jeitosinha. A princípio atrai simpatia porque é, bem, pequeno e despretensioso e jeitosinho. Não bate nele, está aí sentado no banco da praça sem fazer mal pra ninguém. Talvez tenha tido um derrame, está de boca aberta nesse sol faz uma hora já.
O humanismo é do que o Brasil é capaz de melhor, o ponto máximo que um espírito completamente identificado com o espírito nacional é capaz de atingir, nas duas vertentes Crônica e Bossa-nova. Não é ruim. Na França um humanismo muito parecido, só um pouco menos desmilinguido, deu Simenon, que é bom. Deu os filmes de Truffaut, que são mais do que bons. Mas não vai além disso, e na maior parte do tempo fica bem abaixo disso.
O Brasil não é capaz de ir além disso, e na maior parte do tempo fica bem abaixo disso. Vai ficar para sempre sentado num banco de praça, olhando os passarinhos com cara de bobo, falando da Maria Sarnenta da infância dele, que era meio retardadinha, coitada, e tinha olhos de traíra.
Podia ser pior? Podia. Há ideologias piores? Há, muito piores. Graças a Deus pela crônica e pela bossa-nova, porque o Brasil sem isso seria medonho demais para a contemplação humana. Pessoalmente nunca consigo ler Rubem Braga muito tempo sem sentir vontade de ler Nietzsche (não sou um grande fã de nenhum dos dois), mas reconheço uma coisa: associar o pensamento de Nietzsche ao nazismo é uma distorção do pensamento de Nietzsche, mas não uma distorção completa: alguma coisa nele (admiração pela crueldade, pelo “homem forte”) pode ir dar no nazismo se exagerado, ao mesmo tempo que nada na filosofia de Rubem Braga (passarinho é bonitinho, mulher é fascinante, banho de mar é gostoso) jamais vai dar em nada muito ruim, por mais exagerado que seja.
Sei disso. Mas chegamos a esse ponto? Temos que ter pena dos cronistas porque eles estão sentados quietinhos e pelo menos não são nazistas? É isso o melhor do que o espírito nacional é capaz de produzir, alguém que é bonzinho e não aderiu ao Partido Nazista porque perdeu a sunga na correnteza e está pedindo ajuda no Posto 6? Ok, entre um nazista e o tio Valdir olhando pombo na praça escolho o tio Valdir – mas só temos essas duas possibilidades?
Levanta desse banco, carioca! Pára de molestar o colibri! É impossível olhar para um cronista por muito tempo sem sentir uma vontade incontrolável de sacudi-lo freneticamente pelo colarinho.
(Publicado originalmente na edição 37, de março de 2006, da revista Semana 3)
5 Comments:
Hehehe
Nojentamente bom, Alexandre!
Decapitei sua crônica anti-crônica e arrastei a cabeça sangrenta para o banco da praça do Copy & Paste.
Obrigado mais uma vez.
Hahahahahaha... Outra coisa cheia de momentos tio Valdir é a poesia da Adélia Prado...
Marcio Hack
Essa sua crônica foi muuuuito crueeel! Mas engraçada demais, ri a beça! =D
Até que faz sentido sim, já tive momentos de sentir raiva de canarinho, florzinha, gatinho brincando com novelo e tudo que é frufruzinho, mas quem está apaixonado fica bobão mesmo e acha joaninha andando no teto a coisa mais linda do mundo, aí nos passamos por bobos (e somos mesmo), mas é bem melhor viver assim. ;-)
Confesso que ri.
Mas queria mesmo é lhe perguntar: Já leu Mineirinho?
COnsideras Tremendas Trivialidades, do Chesterton, um livro de crônicas?
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