Alexandre Soares Silva, dezembro de 2004
Não me falem das nossas coisas
Acabo de ver um documentário sobre Truman Capote – ele sempre muito divertido, falando mal de uma ex-amiga na tevê com aquela maldade que me faz admirar certas bichas, literárias ou não. Meu problema é com o escritor brasileiro que aparece nos intervalos do documentário americano. Porque justamente lhe falta maldade; porque ele fala com um tom adocicado de bispo; porque ele é todo diáfano.
Começa que me irrita essa mania de interromper cada documentário estrangeiro para mostrar uns brasileirinhos tronchos que dizem, “Impressionante, não é, gente? Mas agora vamos ver como é que tudo isso se refletiu no Brasil”. Que mania de falar nas “nossas coisas”. É muito vil.
Outro dia comprei a edição brasileira do “Dicionário de Lugares Imaginários”, de Alberto Manguel – muito bom, muito bom, recomendo atabalhoadamente –, e vi na nota do tradutor que eles preferiram cortar vários verbetes dedicados a Tolkien e C. S. Lewis para dar lugar aos “nossos autores” – entre eles, João Ubaldo Ribeiro. Por favor, que necessidade é essa de ficar me lembrando dos nossos autores? Acho muito rude.
Suponho que isso acontece no mundo todo, mas em alguns lugares isso deve ser especialmente cruel. Imagino um documentário sobre Ticiano e Tintoretto passando na tevê da Guatemala, por exemplo. Daí nos intervalos aparece um intelectual guatemaltecozinho falando sobre os equivalentes guatemaltecos de Ticiano e Tintoretto. Oh, a dor, a dor. É de uma maldade de chinês lembrar a um guatemalteca distraído que ele é um guatemalteca – assim, de repente, quando ele olhava Tintorettos comendo pipoca. Vamos parar com esse tique do espírito de ficar pensando nas “nossas coisas” quando vemos as coisas dos outros? Pode ser?
Mas eu falava desse escritor magrela, inteligente, refinado, vago e gasoso, algo untuoso, que apareceu cheio de doçura na minha tela e me revoltou. Essa visão diáfana da literatura é o principal obstáculo à produção de uma obra-prima. Essa gente diáfana! Falam de coisas sublimes, e mesmo quando têm humor é um humor meio sublime, malditamente sublime – um humor que nos enleva, cheio de epifania e vagamente asqueroso.
A avozinha folclórica de alguém diria que “é falta de Jesus no coração” – e, quer saber, é mesmo. Esses sentimentos de exaltação religiosa que se desenvolveriam tão bem numa igreja ficam patéticos numa livraria e piores ainda num documentário sobre Truman Capote. O escritor brasileiro no documentário fala sobre romances-reportagem com uma exaltação de Titi, da Titi d´ “A Relíquia” de Eça de Queirós – mas de uma Titi que substituiu os santos todos por escritores. Quem perde a religião e a substitui pela arte corre esses riscos, de ser a velhinha beata e mofadinha da Grande Arte, distribuindo imagens de Kafka crucificado e rezando a Ismail Kadaré para ver curada uma sentença tortinha.
Oh, como são sérias essas Titis da literatura. Note que de fato preferem autores da Europa Central, e que a literatura anglo-saxã lhes mete um nojinho qualquer – é muito simples, muito macha, tem demasiado humor. É claro que Kafka tem humor (não sejam tão rudes a ponto de me informar isso assim na minha cara), mas não é exatamente isso que eles procuram em Kafka. No fundo gostam mesmo da Europa Central porque todos os romances de lá têm uns campinhos de concentração no meio, e estão cheios de uns exemplos de sofrimento sublime.
O que dá um certo desgosto é ver como os escritores – os escritores medíocres de qualquer país, de qualquer tempo – têm essa cara de escritores. Em qualquer profissão é assim – advogados medíocres se esforçam para pensar como advogados e a parecer com advogados, ter hobbies de advogados e mulheres com cara de mulheres de advogados, com filhos de advogados (preferencialmente) e cachorros de advogados. Mas nas artes, que são justamente o terreno das individualidades (oh, fui um pouco diáfano agora), não deveria ser assim, não é? E no entanto vemos pintores usando boinas e fazendo uma cara impressionante de pintores, com um jeitão muito artístico, e escritores que bebem porque se lembram vagamente que Hemingway bebia, e usam barba para ter uma cara seriona e atormentada, e falam desse jeito oh-tão-diáfano sobre literatura, e (claro, claro, claro) são de esquerda – automaticamente de uma esquerda ligeira, irrefletida, simpaticona e emocional.
“Todos os escritores brasileiros são de esquerda”, disse num jornal um escritor barbudo, Marçal Aquino, que escreve sobre assassinos profissionais baratinhos que trabalham nas estradas mais vagabundas e esburacadas do país (ainda se fosse nas estradas mais atraentes! Caramba!). E sim, tem razão: os escritores são de esquerda como os pintores usam boina – porque lhes disseram que é assim mesmo e eles não ficaram pensando muito pra ver se era assim mesmo. Porque, em suma, queriam ter a cara da profissão, queriam se sentir muito escritores. Porque são medíocres. Oh, a pena que têm dos pobres. Oh, as visitas que fazem a presídios...
Todos ouvimos em algum lugar que devemos evitar a construção de personagens unidimensionais ou estereotipados na literatura; que todos os personagens devem ser muito complexos, muito surpreendentes. O motivo disso, costuma-se dizer, é que “as pessoas na vida real são multidimensionais e surpreendentes”. Mas o que fazer quando os escritores mesmos são uns personagens tão estereotipados, e se aproximam de mim usando boinas e bottoms do PT e falando do quanto resistiram à ditadura?
(Publicado originalmente na edição 27, de dezembro de 2004, da revista Semana 3)
Acabo de ver um documentário sobre Truman Capote – ele sempre muito divertido, falando mal de uma ex-amiga na tevê com aquela maldade que me faz admirar certas bichas, literárias ou não. Meu problema é com o escritor brasileiro que aparece nos intervalos do documentário americano. Porque justamente lhe falta maldade; porque ele fala com um tom adocicado de bispo; porque ele é todo diáfano.
Começa que me irrita essa mania de interromper cada documentário estrangeiro para mostrar uns brasileirinhos tronchos que dizem, “Impressionante, não é, gente? Mas agora vamos ver como é que tudo isso se refletiu no Brasil”. Que mania de falar nas “nossas coisas”. É muito vil.
Outro dia comprei a edição brasileira do “Dicionário de Lugares Imaginários”, de Alberto Manguel – muito bom, muito bom, recomendo atabalhoadamente –, e vi na nota do tradutor que eles preferiram cortar vários verbetes dedicados a Tolkien e C. S. Lewis para dar lugar aos “nossos autores” – entre eles, João Ubaldo Ribeiro. Por favor, que necessidade é essa de ficar me lembrando dos nossos autores? Acho muito rude.
Suponho que isso acontece no mundo todo, mas em alguns lugares isso deve ser especialmente cruel. Imagino um documentário sobre Ticiano e Tintoretto passando na tevê da Guatemala, por exemplo. Daí nos intervalos aparece um intelectual guatemaltecozinho falando sobre os equivalentes guatemaltecos de Ticiano e Tintoretto. Oh, a dor, a dor. É de uma maldade de chinês lembrar a um guatemalteca distraído que ele é um guatemalteca – assim, de repente, quando ele olhava Tintorettos comendo pipoca. Vamos parar com esse tique do espírito de ficar pensando nas “nossas coisas” quando vemos as coisas dos outros? Pode ser?
Mas eu falava desse escritor magrela, inteligente, refinado, vago e gasoso, algo untuoso, que apareceu cheio de doçura na minha tela e me revoltou. Essa visão diáfana da literatura é o principal obstáculo à produção de uma obra-prima. Essa gente diáfana! Falam de coisas sublimes, e mesmo quando têm humor é um humor meio sublime, malditamente sublime – um humor que nos enleva, cheio de epifania e vagamente asqueroso.
A avozinha folclórica de alguém diria que “é falta de Jesus no coração” – e, quer saber, é mesmo. Esses sentimentos de exaltação religiosa que se desenvolveriam tão bem numa igreja ficam patéticos numa livraria e piores ainda num documentário sobre Truman Capote. O escritor brasileiro no documentário fala sobre romances-reportagem com uma exaltação de Titi, da Titi d´ “A Relíquia” de Eça de Queirós – mas de uma Titi que substituiu os santos todos por escritores. Quem perde a religião e a substitui pela arte corre esses riscos, de ser a velhinha beata e mofadinha da Grande Arte, distribuindo imagens de Kafka crucificado e rezando a Ismail Kadaré para ver curada uma sentença tortinha.
Oh, como são sérias essas Titis da literatura. Note que de fato preferem autores da Europa Central, e que a literatura anglo-saxã lhes mete um nojinho qualquer – é muito simples, muito macha, tem demasiado humor. É claro que Kafka tem humor (não sejam tão rudes a ponto de me informar isso assim na minha cara), mas não é exatamente isso que eles procuram em Kafka. No fundo gostam mesmo da Europa Central porque todos os romances de lá têm uns campinhos de concentração no meio, e estão cheios de uns exemplos de sofrimento sublime.
O que dá um certo desgosto é ver como os escritores – os escritores medíocres de qualquer país, de qualquer tempo – têm essa cara de escritores. Em qualquer profissão é assim – advogados medíocres se esforçam para pensar como advogados e a parecer com advogados, ter hobbies de advogados e mulheres com cara de mulheres de advogados, com filhos de advogados (preferencialmente) e cachorros de advogados. Mas nas artes, que são justamente o terreno das individualidades (oh, fui um pouco diáfano agora), não deveria ser assim, não é? E no entanto vemos pintores usando boinas e fazendo uma cara impressionante de pintores, com um jeitão muito artístico, e escritores que bebem porque se lembram vagamente que Hemingway bebia, e usam barba para ter uma cara seriona e atormentada, e falam desse jeito oh-tão-diáfano sobre literatura, e (claro, claro, claro) são de esquerda – automaticamente de uma esquerda ligeira, irrefletida, simpaticona e emocional.
“Todos os escritores brasileiros são de esquerda”, disse num jornal um escritor barbudo, Marçal Aquino, que escreve sobre assassinos profissionais baratinhos que trabalham nas estradas mais vagabundas e esburacadas do país (ainda se fosse nas estradas mais atraentes! Caramba!). E sim, tem razão: os escritores são de esquerda como os pintores usam boina – porque lhes disseram que é assim mesmo e eles não ficaram pensando muito pra ver se era assim mesmo. Porque, em suma, queriam ter a cara da profissão, queriam se sentir muito escritores. Porque são medíocres. Oh, a pena que têm dos pobres. Oh, as visitas que fazem a presídios...
Todos ouvimos em algum lugar que devemos evitar a construção de personagens unidimensionais ou estereotipados na literatura; que todos os personagens devem ser muito complexos, muito surpreendentes. O motivo disso, costuma-se dizer, é que “as pessoas na vida real são multidimensionais e surpreendentes”. Mas o que fazer quando os escritores mesmos são uns personagens tão estereotipados, e se aproximam de mim usando boinas e bottoms do PT e falando do quanto resistiram à ditadura?
(Publicado originalmente na edição 27, de dezembro de 2004, da revista Semana 3)
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