Monday, March 20, 2006

Alexandre Soares Silva, ago/set de 2005

Moda é a mãe



Estou lendo aqui que o conservadorismo “está na moda”. Na minha experiência, quando se diz que algo está na moda é para acabar com esse algo; para meter vergonha nele, fazer com que se ache uma maria-vai-com-as-outras. Você vai andando na rua, alguém aponta a sua calça e diz: “Ah, usar calça agora está na moda, né? A boneca faz de tudo pra estar na moda, né?”. E você continua a andar, subitamente envergonhado de estar usando calças.

E se dizem que está na moda ser conservador é pelo mesmo motivo. Mas ser conservador não pode ser uma moda, porque ser conservador é o normal do espírito humano.

Até mesmo por definição. Um conservador olha para os milênios de história sentindo respeito pelas instituições que funcionaram. Se reconhece que algumas instituições precisavam acabar, faz isso com alguma dificuldade. Sente sempre que é preciso oferecer uma oposição às mudanças bruscas, e que no conflito entre uma instituição de séculos e um teórico radical que quer acabar com essa instituição, o ônus da prova está com o teórico radical. (É a primeira vez que digo “ônus da prova” sem rir. Mas não é porque estou ficando adulto, é porque estou com dor de dente desde sábado. Ah, esquece.)

Não se trata de se opor ao teórico radical sempre: uma vez em cada cem ele está certo e a instituição deve acabar. Trata-se de impor alguma desconfiança ao teórico - uma desconfiança tanto instintiva quanto racional. O anticonservador, por oposição, parece sempre não ter desconfiança nenhuma: se aparece alguém propondo substituir o casamento pelo amor livre, pelo casamento aberto ou pelo joguinho da garrafa, agora tornado oficial e supervisionado pelo Estado, o anticonservador fica entusiasmado, grita um slogan embaraçoso e manda ao Estado que encomende as garrafas.

Essa desconfiança é instintiva e racional. É instintiva porque o conservadorismo, como disse o filósofo Michael Oakeshott, é um tipo de temperamento, uma disposição da alma; e é racional porque é próprio das pessoas racionais desconfiarem um pouquinho da razão. Se alguém me apresenta um plano para abolir a amizade, digamos, e substituí-la por Cupons Interrelacionais Distribuídos pelo Estado (CIDE), por mais que o plano pareça racional no papel e momentaneamente me convença de que vai acabar mesmo com o lado ruim de todas as amizades, como a não-devolução de livros emprestados, a razão me manda desconfiar que a minha capacidade racional, junto com a capacidade racional do proponente dos CIDEs, não é capaz de prever todas os problemas desse plano e que é melhor ficar com a amizade mesmo, porque afinal ela já foi testada durante alguns milhares de anos e, bem ou mal, funciona. Mas anticonservadores, lamento dizê-lo, parecem não desconfiar da razão nunca. (Podem desconfiar de um plano específico, que examinam muitas vezes com bastante cuidado. Mas se a própria razão lhes diz que o plano é bom, parecem não desconfiar da própria razão nunca.)

Mesmo que um plano pareça completamente racional, é preciso desconfiar dele; sobretudo se ele parece completamente racional. Os últimos três séculos foram cheios de planos muito racionais para acabar com coisas que vinham funcionando bem: o casamento tradicional, o romance tradicional, a música tradicional, a arquitetura tradicional. “Funcionando bem? Mas e a Crise do Casamento Tradicional?”. A Crise do Casamento Tradicional, na minha opinião, assim em maiúsculas, foi exagerada em filmes e livros exatamente por pessoas interessadas em acabar com o casamento tradicional e substituí-lo pelo último plano da moda. Enquanto o casamento “acabava” (pfui), milhões de casais casados continuavam juntos, tendo o mesmo grau de felicidade/infelicidade que caracteriza a vida humana em qualquer lugar, em qualquer época. Mesma coisa com as cidades, que supostamente estavam “crescendo caoticamente” e precisavam, claro, da organização de um planificador estatal - que se divertiu durante algumas décadas desenhando cidades em formatos geométricos, que iam de quadradinhos a estrelas-do-mar. Vamos fazer todos os padeiros viverem num bairro só! Vamos criar um bairro só para colecionadores de selos! Assim eles vivem juntos e se reúnem nesta Praça Central Para Troca de Selos e Similares! Ah, que diversão.

Só a arrogância das esquerdas pode achar que essa desconfiança em relação às mudanças radicais é “uma moda”. Volto a dizer que é o natural do espírito humano; moda foi justamente a confiança excessiva na razão, que começou, falando grosseiramente, com o Iluminismo; e o final de uma moda não é uma moda. Sempre vamos ter radicais propondo vários tipos de inovações sociais malucas – como, sei lá, o fim da propriedade privada, o casamento aberto, a esmola compulsória ou a regulamentação estatal do namorico de praia. Essas inovações sociais malucas vão ser aceitas durante uns vinte, trinta anos; pessoas vão fazer filmes mostrando como essas inovações sociais malucas são bonitas, e como as tradições que elas substituíram eram asfixiantes e vis; e alguns desses filmes vão ser até simpáticos, com uma trilha sonora bacaninha. Mas quando essas inovações sociais malucas finalmente acabarem, isso não vai ser uma moda; vai ser o fim de uma moda.

Da minha parte, não consigo deixar de achar que a visão de mundo tradicional – e se você não sabe o que é a visão de mundo tradicional, pense em tudo aquilo que um intelectual de esquerda odeia – nascia da experiência humana, e que quando queremos fugir disso acabamos adotando vários tipos de práticas bizarras e patetas. Abandone a visão tradicional do mundo – mais especificamente, abandone o cristianismo – e tudo quanto é tipo de aberração vai surgir, com um intelectual radical de boina a defendendo todo contente.

(Publicado originalmente na edição 33, de ago/set de 2005, da revista Semana 3)

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