Alexandre Soares Silva, novembro de 2005
O mito brega da oposição
Quando Lula virou presidente (ah, não se pode dizer “virou”, como se ele fosse um lobisomem; em colunas políticas só se pode dizer “foi eleito”, eu sei), no primeiro momento fiquei contente porque, pela primeira vez na minha vida, eu ia ser realmente oposição. De verdade! Como toda aquela gente que eu passei a adolescência admirando: Paulo Francis, Millôr Fernandes, sei lá eu mais quem.
Me lembro que na época, na semana mesmo da eleição, estava discutindo o assunto por e-mail com um bando de petistas. Na noite da eleição deixei uma mensagem que para mim parecia de triunfo, meu, para eles: “Parabéns: vocês agora são situacionistas.”
Fui dormir, aquela noite, sendo oposição – e todos aqueles cretinos, comemorando com buzinas na Avenida Paulista, foram dormir situacionistas, governistas, e mais uma série de coisas inacreditavelmente vergonhosas. (Em política, que o nosso lado sempre perca: é o que eu desejo de melhor para a dignidade de qualquer pessoa.)
Mas ao acordar no dia seguinte, a primeira coisa que pensei foi: “Ok, sou oposição – vamos pegar o jornal e ver o que está acontecendo”. E o pensamento de que agora eu era obrigado a prestar atenção no que um lorpa badameco como Lula dizia ou fazia me deprimiu tanto que as unhas se despregaram dos meus pés de tanto desgosto, e meus cabelos ficaram brancos do nojo de semelhante tarefa.
Recusei. Não fui oposição, nem mesmo no meu cantinho. Na verdade, nesses três anos mal falei do Lula. Talvez, quando alguém me contava uma ou outra coisa que o Lula fez, eu tenha rido pelo nariz; mas tenho certeza que foi só isso. Mal tomei conhecimento da existência de Lula, e me orgulho de ter feito isso. A beleza de ser oposição é um mito romântico e brega abraçado por jornalistas – pessoas que muitas vezes, para qualquer outro assunto, são sensatamente cínicas, mas no fim acham romântico desperdiçar o próprio talento prestando atenção no deputado tal, no senador não sei das quantas, para poder falar mal deles numa coluna.
Claro, ainda piores que os jornalistas que acreditam no mito romântico e brega da Oposição são os jornalistas que não acreditam nele. Há quem não dê a mínima. Me lembro muito bem, e espero que todo mundo se lembre, como praticamente todos os jornalistas brasileiros escreveram coisas de uma subserviência patética nos primeiros meses do governo Lula (e nos meses anteriores também). O que eles disseram de Lula, em público, eu teria vergonha de dizer de uma mulher bonita, sozinho com ela, no escuro.
Essas mesmas pessoas passaram décadas cultivando o mito romântico do jornalista de oposição, ouvindo Elis Regina, cheirando cocaí-na e chorando. No primeiro governo feito de gente mais ou menos como eles, abaixaram as calças. (É difícil evitar essa imagem sexual aqui. Eles mesmo usavam imagens sexuais contra quem de alguma forma se aliou aos militares durante a ditadura. “Lambedor de botas” era o que diziam de mais leve.)
Os nomes dessas pessoas estão guardados para sempre, onde quer que jornais sejam guardados. Seus netos, bisnetos e trisnetos verão o papel bonito que fizeram. É como ter um trisavô que ficou conhecido por passar quatro anos falando bem do Excelentíssimo Sr. Presidente Venceslau Brás. Ok, não é a mesma coisa que ter apoiado Hitler ou Mussolini, concedo; mas mesmo assim não enche ninguém de orgulho ao olhar a foto do trisavô bigodudo.
Da minha parte achei bom que Diogo Mainardi tivesse se ocupado em ser, quase sozinho durante um bom tempo (blogs não contam), a oposição a Lula; ele fez o que fez muito bem, e embora eu tivesse preferido que ele passasse esse tempo escrevendo livros, o fato é que ele me livrou de ter que fazer a mesma coisa aqui no meu canto. Desse modo pude passar três anos lendo romances do século XIX, e ouvindo Beethoven enquanto comia bala de goma. Vi várias vezes os seis filmes da série “Thin Man”, com William Powell e Myrna Loy. Escrevi sobre, sei lá eu, Lee Van Cleef, Philip Seymour Hoffman, os livros de James Bond. Sei que o governo do PT esteve envolvido numa coisa chamada Escândalo do Mensalão, mas não quero saber dos detalhes.
Recusei a tentação de me rebaixar ao nível da mera oposição. A desgraça da oposição é ter que prestar atenção naquilo a que se opõe. E é isso que todos os governos querem, mais do que bajulação ou adesão irrestrita: que prestem atenção neles. Sei que há pessoas que acreditam que todos os governantes querem que não prestemos atenção neles, para que eles possam fazer o que quiserem. Mas essa teoria é bobagem, porque não leva em conta a vaidade humana.
Se me perguntarem, a melhor e mais dolorida maneira de insultar os políticos seria inverter a ordem dos cadernos nos jornais, e pôr tudo como sempre deveria ter sido: cultura primeiro, esporte depois; seguido de noticiazinhas sobre árvores que caíram na chuva, mulheres mortas por ex-maridos, e os invariáveis escoteiros perdidos na floresta. E só depois política.
Acham que políticos se importam em serem atacados em colunas na página dois? Claro que não – ninguém se importaria. Eu sei que eu adoraria. Não, não – jogue todos para uma notinha no último caderno. Isso sim seria subversivo.
(Publicado originalmente na edição 35, de novembro de 2005, da revista Semana 3)
Quando Lula virou presidente (ah, não se pode dizer “virou”, como se ele fosse um lobisomem; em colunas políticas só se pode dizer “foi eleito”, eu sei), no primeiro momento fiquei contente porque, pela primeira vez na minha vida, eu ia ser realmente oposição. De verdade! Como toda aquela gente que eu passei a adolescência admirando: Paulo Francis, Millôr Fernandes, sei lá eu mais quem.
Me lembro que na época, na semana mesmo da eleição, estava discutindo o assunto por e-mail com um bando de petistas. Na noite da eleição deixei uma mensagem que para mim parecia de triunfo, meu, para eles: “Parabéns: vocês agora são situacionistas.”
Fui dormir, aquela noite, sendo oposição – e todos aqueles cretinos, comemorando com buzinas na Avenida Paulista, foram dormir situacionistas, governistas, e mais uma série de coisas inacreditavelmente vergonhosas. (Em política, que o nosso lado sempre perca: é o que eu desejo de melhor para a dignidade de qualquer pessoa.)
Mas ao acordar no dia seguinte, a primeira coisa que pensei foi: “Ok, sou oposição – vamos pegar o jornal e ver o que está acontecendo”. E o pensamento de que agora eu era obrigado a prestar atenção no que um lorpa badameco como Lula dizia ou fazia me deprimiu tanto que as unhas se despregaram dos meus pés de tanto desgosto, e meus cabelos ficaram brancos do nojo de semelhante tarefa.
Recusei. Não fui oposição, nem mesmo no meu cantinho. Na verdade, nesses três anos mal falei do Lula. Talvez, quando alguém me contava uma ou outra coisa que o Lula fez, eu tenha rido pelo nariz; mas tenho certeza que foi só isso. Mal tomei conhecimento da existência de Lula, e me orgulho de ter feito isso. A beleza de ser oposição é um mito romântico e brega abraçado por jornalistas – pessoas que muitas vezes, para qualquer outro assunto, são sensatamente cínicas, mas no fim acham romântico desperdiçar o próprio talento prestando atenção no deputado tal, no senador não sei das quantas, para poder falar mal deles numa coluna.
Claro, ainda piores que os jornalistas que acreditam no mito romântico e brega da Oposição são os jornalistas que não acreditam nele. Há quem não dê a mínima. Me lembro muito bem, e espero que todo mundo se lembre, como praticamente todos os jornalistas brasileiros escreveram coisas de uma subserviência patética nos primeiros meses do governo Lula (e nos meses anteriores também). O que eles disseram de Lula, em público, eu teria vergonha de dizer de uma mulher bonita, sozinho com ela, no escuro.
Essas mesmas pessoas passaram décadas cultivando o mito romântico do jornalista de oposição, ouvindo Elis Regina, cheirando cocaí-na e chorando. No primeiro governo feito de gente mais ou menos como eles, abaixaram as calças. (É difícil evitar essa imagem sexual aqui. Eles mesmo usavam imagens sexuais contra quem de alguma forma se aliou aos militares durante a ditadura. “Lambedor de botas” era o que diziam de mais leve.)
Os nomes dessas pessoas estão guardados para sempre, onde quer que jornais sejam guardados. Seus netos, bisnetos e trisnetos verão o papel bonito que fizeram. É como ter um trisavô que ficou conhecido por passar quatro anos falando bem do Excelentíssimo Sr. Presidente Venceslau Brás. Ok, não é a mesma coisa que ter apoiado Hitler ou Mussolini, concedo; mas mesmo assim não enche ninguém de orgulho ao olhar a foto do trisavô bigodudo.
Da minha parte achei bom que Diogo Mainardi tivesse se ocupado em ser, quase sozinho durante um bom tempo (blogs não contam), a oposição a Lula; ele fez o que fez muito bem, e embora eu tivesse preferido que ele passasse esse tempo escrevendo livros, o fato é que ele me livrou de ter que fazer a mesma coisa aqui no meu canto. Desse modo pude passar três anos lendo romances do século XIX, e ouvindo Beethoven enquanto comia bala de goma. Vi várias vezes os seis filmes da série “Thin Man”, com William Powell e Myrna Loy. Escrevi sobre, sei lá eu, Lee Van Cleef, Philip Seymour Hoffman, os livros de James Bond. Sei que o governo do PT esteve envolvido numa coisa chamada Escândalo do Mensalão, mas não quero saber dos detalhes.
Recusei a tentação de me rebaixar ao nível da mera oposição. A desgraça da oposição é ter que prestar atenção naquilo a que se opõe. E é isso que todos os governos querem, mais do que bajulação ou adesão irrestrita: que prestem atenção neles. Sei que há pessoas que acreditam que todos os governantes querem que não prestemos atenção neles, para que eles possam fazer o que quiserem. Mas essa teoria é bobagem, porque não leva em conta a vaidade humana.
Se me perguntarem, a melhor e mais dolorida maneira de insultar os políticos seria inverter a ordem dos cadernos nos jornais, e pôr tudo como sempre deveria ter sido: cultura primeiro, esporte depois; seguido de noticiazinhas sobre árvores que caíram na chuva, mulheres mortas por ex-maridos, e os invariáveis escoteiros perdidos na floresta. E só depois política.
Acham que políticos se importam em serem atacados em colunas na página dois? Claro que não – ninguém se importaria. Eu sei que eu adoraria. Não, não – jogue todos para uma notinha no último caderno. Isso sim seria subversivo.
(Publicado originalmente na edição 35, de novembro de 2005, da revista Semana 3)
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