Monday, March 20, 2006

Alexandre Soares Silva, agosto de 2004

Céu, inferno e as mulheres



Amigos que freqüentam a Unicamp me dizem que estou errado quando digo que o Inferno fica em Osasco. As pessoas do país todo, dizem eles, quando morrem e foram más, vão para Barão Geraldo assistir aula (e se tornam Mestrandos de Ciência Política. Tenho certeza que no Inferno todos são mestrandos, arrastando os pés em busca de bibliografias e para sempre ansiosos pela aprovação da bancada de demônios).

Da minha parte não acho que vocês de Campinas possam se gabar de ter O Inferno; a Unicamp não me parece pior do que a Usp, a Puc, Oxford ou qualquer Uniban. Com maior ou menor eficiência, bibliotecas melhores ou piores e alunos com diferentes graus de feiúra (quanto pior a faculdade, mais espinhas eles têm – eis aqui um bom método de classificação do ensino superior que ainda não vi ser aplicado), são todas parte do Inferno. Talvez, ao morrer, as pessoas más façam um vestibular. Quem além de mau for burro vai para uma dessas universidades com siglas esquisitas, Unibao, Unibimbo, sei lá eu.

Mas sim, a academia é uma das muitas formas de infelicidade no mundo. E a pós-graduação é uma forma especialmente cruel de tortura - um pau-de-arara dos joelhos do espírito. Quem faz tese não sorri, quem faz tese suspira muito. Todas as pessoas que conheço que estão fazendo tese dizem que não têm mais tempo para ver filmes, para ler livros, para fazer cútchi-cútchi na bochecha da mulher amada. Parecem arrasados, massacrados pela vida. Devem de fato ter sido maus e ido para a Unicamp.

Quem faz tese, alguma coisa fez para merecer.

E as pessoas que trabalham nas secretarias das faculdades são evidentemente demônios. Podem ter vários nomes, Marta, Juvenilda, Tim. Mas pessoas que trabalham em secretarias de faculdades são sempre demônios que riem da sua, nossa, minha, tragédia burocrática. Manuseiam papeizinhos coloridos com ares de monstros gargalhantes, de oficiais da Gestapo decidindo o seu destino com frieza. E fecham o guichê na sua cara de alma condenada.

E, dizem-me, Hitler e Brizola foram vistos assistindo a uma aula de “Literatura e Outros Códigos Estéticos” na sala CL10 do Inferno.
-Mãe, que aconteceu com o vovô?
-Ah, meu filho, o vovô morreu e foi desenvolver tese. Agora reza e vai dormir.

***

(Escrevi o texto abaixo, sobre as mulheres, algum tempo atrás – e não tive coragem de publicar porque naquela época um amigo meu estava casando, e eu não queria que ele desse uma interpretação excessivamente literal aos meus exageros retóricos. Considerando-se que eu era o padrinho, não pegaria bem ele achar que eu realmente queria interromper o casamento, dar um tiro nele e, humm, “fazer algo” com a noiva. Padrinhos não podem fazer isso. Que gafe, que gafe. Mas agora vai.)

Sinto ciúmes de todas as mulheres do mundo. É terrível, numa noite como esta, encostar a cabeça na janela, olhar para a cidade e imaginar que cada luzinha é uma mulher linda me traindo. Queria sair de mangueirinha separando todos os casais, e acho a atração sexual que as mulheres têm por homens que não sou eu uma coisa obscena, imunda. Nunca vi um casamento, mesmo de uma desconhecida, em que não quisesse levantar e gritar, “Parem! É um erro!” Vejo a história da humanidade como uma longa história de traições a mim – as mulheres deviam, todas (Helena, Laura, Eleonor de Aquitânia) terem se mantido castas na esperança de que um dia eu nascesse. Cada carinho feito por uma mulher linda desde o início dos tempos devia ter sido feito em mim, em mim – mesmo os carinhos feitos às rosas. E esta é toda a tragédia do mundo.

***

Algumas mulheres esperaram por mim - na Grécia, na Turquia, na China, na Índia, na Itália. Sob os impérios de Carlos Magno, de Teobaldo II, de Calígula e Caracala, sob as presidências de Lincoln, Taft e Venceslau Brás, algumas mulheres envelheceram esperando por mim. Não há noite que passe sem que eu beije a memória do rosto delas, refletida na fonte tranqüila da minha imaginação.

***

A atração dos homens pelas mulheres é também vil, é grosseira e insolente - elas são minhas, e só eu sei apreciá-las com a suficiente delicadeza de espírito. Cada marido é um canalha que comete adultério todas as noites de sua vida de casado, pelo fato de ir para a cama com a mulher que deveria ter casado comigo, se não fosse o azar de ter sido separado delas por décadas ou séculos ou mares. Aproveitaram-se desse pequeno azar e oficializaram seu adultério vil com uma cerimônia que apenas imita o casamento. Cada casamento é um crime, e queria dar um tiro em cada noivo.

***

Queria acordar no meio de uma cama impossivelmente grande, onde estou eu e todas as mulheres lindas que já existiram. Elas todas em variados graus de deshabillé. Abraçado a Ava Gardner, dou um beijinho no braço de Elsa Martinelli. Agarro Juliette Binoche pela cintura, rolamos para cima de Katie Holmes e minhas duas namoradinhas de infância, Patrícia Nakamura e Adriana Espíndola. Deduzo pelas conversas que Cleópatra está com o controle remoto, mudando de canal em canal – há uma tela gigantesca na nossa frente, e entre pernas e pescoços vejo, durante um segundo, a cara de James Stewart em “Janela Indiscreta”. O filme está começando e ouço Elizabeth Taylor dizer, “Vou fazer pipoca”. Isabella Rosselini faz comentários sarcásticos – não a enxergo, deve estar na cama uns vinte metros mais à esquerda. Enquanto uma Anita Ekberg jovem assopra no meu umbigo e Charlotte Rampling me faz cafuné, pergunto o que aconteceu, como vim parar lá, que diabos é isso. Me dizem que morri, estou no céu, casado com elas todas. Pergunto pelos antigos namorados e maridos delas. “Morreram e viraram todos gays. Estão casados uns com os outros, felicíssimos”. (Fico feliz por eles, muitos eram meus amigos.) “Oh, eu sentia tantos ciúmes de vocês”, eu digo, e começo a chorar. “De vocês todas.” Elas lutam para chegar perto de mim e secar as minhas lágrimas com beijos. “Tantos, tantos ciúmes”. “Ah, passou, passou. Que gracinha. Agora dá um beijo, encosta a cabeça aqui e vamos ver o filme.”

(Publicado originalmente na edição 25, de agosto de 2004, da revista Semana 3)

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