Monday, March 20, 2006

Alexandre Soares Silva, maio de 2004

Olá



Uma amiga minha comprou um livro porque tinha foto de gente pobre na capa e ela sentiu pena. Juro, não estou brincando.

Pensei em fazer isso também. De agora em diante, cada livro meu vai ter foto de gente pobre na capa. É claro que não basta ser pobre... Não basta ser um sujeito que ganha pouco mas está vestido decentemente, sentado numa poltroninha. É preciso parecer pobre, ter um barrigão cheio de vermes, essas coisas.

Na verdade pensei em procurar um primo do meu primo, sujeito alcoólatra que vive sem camisa e é barrigudo, e pedir para tirar fotos dele no seu quintal esquálido, sentado numa lata de soja enferrujada.

- Agora coça o barrigão e faz cara de pobre.
- Mas eu sou pobre...

Que mania é essa de pobreza agora? Cada ator que se vê nos filmes ganha mais do que o personagem que representa, e nunca o contrário. Isso é significativo. Eu queria ver um filme em que o ator ganhasse menos que o personagem que representa. Um. Unzinho.

Bom, o livro era um desses de gramáticos malucos que querem provar que a chamada norma culta (o português que eu e você chamamos de correto) é uma forma de opressão e que legalzinho mesmo é falar tudo errado, coisa e tal. Pode ser, pode ser, mas eu nunca entendi o que há de tão errado em oprimir as pessoas um pouquinho. Oprimir é bacaninha, desde que feito com moderação. Oprima com sabedoria. E se não oprimirmos os pobres, eles vão ficar por aí sem fazer nada, profundamente entediados e falando tudo errado. Vão acabar oprimindo uns aos outros para aplacar o tédio, e você sabe pobre como é quando briga, tem sempre um que dá um tiro e mata uma pessoa que ia passando do outro lado da rua. Estou avisando.

***

Não sabe nada sobre a vida quem vê tevê sentado ou de pé; você tem que deitar no chão, num tapete. E com alguma coisa na barriga subindo e descendo junto com o umbigo - um copo de martini, por exemplo, ou uma garrafa de cerveja, ou um livro, ou um cachorrinho dormindo enrodilhado...

E nada de tevê aberta - que, como sabemos, só é vista agora tarde da noite, ou no meio da tarde, por pessoas que fumam maconha; ninguém sóbrio e são veria aquilo. (Só a minha mãe, talvez.) Tenho espasmos no cérebro cada vez que passo na sala e ouço o diálogo das novelas.

Diálogos de novela são um dos pontos baixos do espírito humano. Você vê um bando de seres humanos reunidos num estúdio no Rio, alguém grita "Atenção, gravando!" e de repente eles não parecem mais seres humanos. Alguns são bons atores, mas começam a falar como extras. Extras, por sua vez, falam como zumbis. Repara nos extras.

Mas é possível ser feliz vendo tevê a cabo. Vendo exatamente aquilo que as pessoas muito cretinas ainda chamam de "enlatados". Se são enlatados, há arte nessas latinhas. Sim, arte. Vi uma vez um escritor brasileiro - velho, ruim e pomposo - falando com desprezo, numa entrevista, das "comediotas da Sony". Mas cada comédia daquelas, mesmo as piores, são reescritas dezenas de vezes, cada linha sendo tratada com um cuidado que duvido muito que esse escritor tenha com os seus livros. Ele lê cada linha em voz alta? Várias vezes? Várias, várias vezes? Com pessoas ouvindo, para que ele possa ir mudando uma palavra aqui e acolá de acordo com a reação delas? Duvido muito.

Era o Inácio de Loyola Brandão, caso você tenha ficado curioso. Não ia mencionar o nome, ia bancar o elegante e coisa e tal. Mas não resisti. Gosto de fazer inimigos gratuitamente. Um por semana - mantém você em forma, acaba com aqueles temidos pneuzinhos da alma. Excelente passatempo para a garotada, diversão sadia que os mantém afastados das drogas. Oh, um dos meus heróis era um jornalista inglês que dizia que, quando não tinha inimigos, saía e arranjava um. Auberon Waugh, homem muito odiado. Disse que os operários ingleses ganhavam demais e eram muito preguiçosos. Depois escreveu uma coluna dizendo que o pessoal da gráfica do jornal ganhava muito mais do que ele e mesmo assim estavam sempre em greve. Depois disso, cada vez que ia entrando no jornal e tinha que passar pela gráfica, era vaiado pelos operários. Passava no meio deles sorrindo levemente e com a coluna excessivamente reta, que arrogante. Ele mesmo se metralhou no Chipre, em 1958. Sem querer. Perdeu um pulmão, o baço, um dedo. Mas divago...

Onde estávamos? Oh, alguma coisa sobre a tevê, mas o resumo é isto: evite os canais abertos, que são feitos por e para maconheiros (nada mais a explica...), e veja sitcoms, que são aquelas coisas que os bocós chamam de "enlatados". Sempre deitado no chão. Deitar no chão é postura mui nobre e conduz à felicidade. Tenho passado muitos anos em casa sem fazer nada, e não posso opinar sobre muita coisa - mas posso opinar sobre a felicidade de ver tevê deitado no chão...

(Publicado originalmente na edição 23, de maio de 2004, do jornal Semana 3)

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