Monday, March 20, 2006

Wagner Geribello, novembro de 2005

Pluralidade x concentração



Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade e das Expressões Culturais. Sob esse título extenso, 148 dos 154 estados membros da Organização das Nações Unidas aprovaram as bases de uma nova política mundial para a cultura, cujo cerne está na reação à crescente concentração dos meios de difusão cultural decorrente, sobretudo, da globalização imposta pelo capitalismo moderno. A aprovação aconteceu em Paris, em 20 de outubro. Como era de esperar, a grande imprensa brasileira deu ao fato importância menor que a merecida.

O documento lança as bases para a defesa da pluralidade cultural, reconhecendo que, assim como na política e na economia, também no plano da cultura o esperado equilíbrio e a desejada igualdade entre as nações cede lugar a um inaceitável quadro de dominantes e dominados, colocando em risco de extinção extensa gama de valores e expressões culturais, desde idiomas até produção cinematográfica, passando pelas mais diferentes formas de manifestação cultural, no sentido antropológico do termo (expressão material de valores sociais).

Pelo menos dois fatores atribuem à aprovação do documento dignidade de manchete: 1) Nasceu no Brasil, em pleno governo PT (este que, reza a mídia, só acerta no aro e não encesta uma), a discussão que deu origem à Convenção, mostrando que, hoje, o país tem um projeto político internacional e 2) A Convenção procura impedir que países periféricos, como Pindorama, vejam práticas e valores culturais próprios desaparecerem na poeira do tempo, enquanto modelos padronizados e globalizados são impostos em todos os quadrantes, sobre todos os povos.

A remessa da matéria para páginas internas em dimensões reduzidas confirma, de um lado, o despreparo da mídia para tratar, com merecida relevância, assuntos de interesse social e, de outro, o corporativismo que norteia as pautas, uma vez que a questão da diversidade versus concentração cultural passa pelo plano midiático.

Considerando a premissa fundamental da antropologia e do mais elementar bom senso de que não existe absolutamente nenhuma possibilidade lógica e racional de hierarquização cultural, que possa criar uma ordem de culturas superiores e culturas inferiores, resta, como único fator explicativo (mas não legitimador) de culturas recessivas e culturas dominantes a difusão. Ou seja, o potencial de ampliação e sobreposição de algumas culturas sobre outras é uma questão midiática: domina a cultura apoiada no maior potencial de difusão, enquanto aquela carente dessa ordem de recursos tende ao atrofiamento e extinção. Portanto, a questão está muito mais na mídia que nas formas de expressão cultural propriamente ditas e, como se sabe, a mídia não gosta de reconhecer que, em nome de interesses econômicos, de quando em vez atua na contramão do interesse social. Além disso, a Convenção da Unesco sugere ações de maior controle no trânsito cultural, o que pode significar interferência governamental sobre a mídia, possibilidade que faz tremer as empresas de informação, (mal) acostumadas a estabelecer seus parâmetros de ação (incluindo éticos) pelas leis (?) de mercado.

Não por outras razões, os Estados Unidos votaram contra a aprovação da Convenção e, lá, a mídia deu relevância ao tema, evidentemente não no sentido de aplaudir a medida que visa compensar o desequilíbrio cultural, mas para condenar a “petulância” dos periféricos, acusando a medida de anti-democrática. Considerando que são americanos 85% dos filmes que serão exibidos hoje em todas as salas do planeta, não é de estranhar que a imprensa estadunidense condene a Convenção e que a vassalagem jornalística de outros países, Brasil incluso, apoie os gringos ou ignore o tema. Afinal, cultura é notícia quando traz lucro e como para 2005 a expectativa é que a indústria cultural movimente mais de um trilhão de dólares, não compensa propagar idéias para redistribuir essa grana e reorganizar o painel cultural sobre o globo terrestre. Fica para a imprensa a missão mais “democrática” de noticiar fatos realmente importantes como a nova produção da HBO, que, aí sim, vale chamada na primeira página.

(Publicado originalmente na edição 35, de novembro de 2005, da revista Semana 3)

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