Monday, March 20, 2006

Marcelo Träsel, março de 2006

Pato no tucupi



Desde que comprei “Viagem gastronômica através do Brasil”, de Caloca Fernandes (editora Senac, R$ 95), sou fascinado por tucupi. Trata-se de um caldo amarelo-ovo retirado durante a prensagem da mandioca-brava, temperado com chicória, alfavaca e sal. É um tipo de “fugu” brasileiro — aquele peixe que tem veneno nas vísceras e pode matar o cliente do sushi bar se não for preparado por um especialista —, já que a mandioca-brava contém ácido cianídrico. Deve-se confiar que o produtor do tucupi ferveu o caldo pelas horas necessárias para decompor toda a substância venenosa.

O molho resultante é usado na preparação de dois dos pratos mais famosos da culinária do Norte: tacacá e pato no tucupi. Como o colega André “Cardoso” Czarnobai foi a Belém do Pará há algumas semanas, exigi que me trouxesse uma garrafa de contrabando. A idéia inicial era preparar um tacacá, mas infelizmente descobri que é impossível encontrar camarão seco em qualquer ponto do Rio Grande do Sul. Daniel Pellizzari, escritor e amazonense, respondeu da seguinte forma à pergunta “posso substituir camarão seco por fresco?”: “Nunca comi com camarão fresco, mas SEI que fica horrendo só de imaginar”. Ataquemos de pato no tucupi, então.

Outro problema para levar a cabo a empreitada era a inexistência de jambu a menos de 8 mil quilômetros de Porto Alegre. De acordo com o livro, porém, ele pode ser substituído por agrião, embora este não apresente a capacidade de amortecer a boca. O sabor é parecido. Chicória-do-Maranhão foi outra planta impossível de conseguir. No entanto, parece que seu gosto é semelhante ao do coentro, não à chicória tradicional do Sul — o motivo do nome é o formato serrilhado da folha, não o gosto —, então fui de coentro mesmo. Ao menos a alfavaca, ou majericão-de-folha-larga, foi obtida com uma simples visita ao supermercado. O pato veio da granja da minha avó. Espero que não fosse o pato preferido de nenhum dos meus priminhos.

A receita de Caloca Fernandes é a seguinte:
— um pato novo de mais ou menos 1,5 kg
— 4 xícaras de tucupi
— 4 dentes de alho amassados
— 4 colheres de sopa de azeite de oliva
— folhas de jambu, chicória e alfavaca
— sal e pimenta do reino

A autora diz para cortar o pato em pedaços na véspera e temperar com o azeite, o alho, o sal e a pimenta. Como ele ainda estava congelado e eu não acredito muito nessas vinhas d’alho de um dia para o outro, fiz isso umas duas horas antes de cozinhar. Depois, assa-se o pato por 40 minutos no forno a 180°C, ou até dourar. Os pedaços da ave são então transferidos para uma panela, regados com o tucupi e cozidos até ficarem macios junto com as folhas de jambu, chicória e alfavaca. Como disse, usei agrião e coentro no lugar das duas primeiras. Aliás, nunca havia presenciado em todo seu fedor um maço de coentro fresco. Até esta ocasião, havia usado somente os grãos. Rezei para que o gosto da erva não fosse parecido com o odor. Imaginem o que deve ser essa tal chicória deles, cujo nome científico é “Eryngium foetidum”.

Cozinhei por mais uns 45 minutos. Quando pronto, deve-se dispor os pedaços de pato em uma sopeira ou forma, espalhar folhas frescas de jambu por cima dele e regar tudo com o tucupi quente, cheio de gordura de pato e do sabor dos outros temperos. A s folhas usadas no cozimento devem ser descartadas. Os acompanhamentos indicados são arroz branco, farinha de mandioca e pimenta.

Francamente, não levei muita fé enquanto preparava o cozido. Aquelas folhas todas tinham odores e sabores estranhos. O tucupi não lembra nada que se conheça aqui no Sul. O cheiro mais aproximado em que consegui pensar foi maracujá. Não errei muito: o sabor é cítrico e lembra um pouco frutas como maracujá, limão e cupuaçu. E é bom. Muito bom. A primeira bocada do pato foi decepcionante, porque o tucupi não tomou conta do sabor — o que, aliás, é uma qualidade da receita: pato tem de ter gosto de pato, apenas com um fundo dos temperos. O molho resultante, porém, apresentou um gosto totalmente novo para mim. Difícil parar de comê-lo misturado ao arroz e à farinha de mandioca, com bastante pimenta vermelha. O próprio agrião, ingrediente que vi com mais reticência, acentua os sabores do tucupi e o pato.

Sei que ficou bom, mas não sei é se ficou parecido com o que deveria. É o problema de tentar pratos que nunca se provou.

(Publicado originalmente na edição 37, de março de 2006, da revista Semana 3)

0 Comments:

Post a Comment

<< Home