Marcelo Träsel, março de 2006
Pato no tucupi
Desde que comprei “Viagem gastronômica através do Brasil”, de Caloca Fernandes (editora Senac, R$ 95), sou fascinado por tucupi. Trata-se de um caldo amarelo-ovo retirado durante a prensagem da mandioca-brava, temperado com chicória, alfavaca e sal. É um tipo de “fugu” brasileiro — aquele peixe que tem veneno nas vísceras e pode matar o cliente do sushi bar se não for preparado por um especialista —, já que a mandioca-brava contém ácido cianídrico. Deve-se confiar que o produtor do tucupi ferveu o caldo pelas horas necessárias para decompor toda a substância venenosa.
O molho resultante é usado na preparação de dois dos pratos mais famosos da culinária do Norte: tacacá e pato no tucupi. Como o colega André “Cardoso” Czarnobai foi a Belém do Pará há algumas semanas, exigi que me trouxesse uma garrafa de contrabando. A idéia inicial era preparar um tacacá, mas infelizmente descobri que é impossível encontrar camarão seco em qualquer ponto do Rio Grande do Sul. Daniel Pellizzari, escritor e amazonense, respondeu da seguinte forma à pergunta “posso substituir camarão seco por fresco?”: “Nunca comi com camarão fresco, mas SEI que fica horrendo só de imaginar”. Ataquemos de pato no tucupi, então.
Outro problema para levar a cabo a empreitada era a inexistência de jambu a menos de 8 mil quilômetros de Porto Alegre. De acordo com o livro, porém, ele pode ser substituído por agrião, embora este não apresente a capacidade de amortecer a boca. O sabor é parecido. Chicória-do-Maranhão foi outra planta impossível de conseguir. No entanto, parece que seu gosto é semelhante ao do coentro, não à chicória tradicional do Sul — o motivo do nome é o formato serrilhado da folha, não o gosto —, então fui de coentro mesmo. Ao menos a alfavaca, ou majericão-de-folha-larga, foi obtida com uma simples visita ao supermercado. O pato veio da granja da minha avó. Espero que não fosse o pato preferido de nenhum dos meus priminhos.
A receita de Caloca Fernandes é a seguinte:
— um pato novo de mais ou menos 1,5 kg
— 4 xícaras de tucupi
— 4 dentes de alho amassados
— 4 colheres de sopa de azeite de oliva
— folhas de jambu, chicória e alfavaca
— sal e pimenta do reino
A autora diz para cortar o pato em pedaços na véspera e temperar com o azeite, o alho, o sal e a pimenta. Como ele ainda estava congelado e eu não acredito muito nessas vinhas d’alho de um dia para o outro, fiz isso umas duas horas antes de cozinhar. Depois, assa-se o pato por 40 minutos no forno a 180°C, ou até dourar. Os pedaços da ave são então transferidos para uma panela, regados com o tucupi e cozidos até ficarem macios junto com as folhas de jambu, chicória e alfavaca. Como disse, usei agrião e coentro no lugar das duas primeiras. Aliás, nunca havia presenciado em todo seu fedor um maço de coentro fresco. Até esta ocasião, havia usado somente os grãos. Rezei para que o gosto da erva não fosse parecido com o odor. Imaginem o que deve ser essa tal chicória deles, cujo nome científico é “Eryngium foetidum”.
Cozinhei por mais uns 45 minutos. Quando pronto, deve-se dispor os pedaços de pato em uma sopeira ou forma, espalhar folhas frescas de jambu por cima dele e regar tudo com o tucupi quente, cheio de gordura de pato e do sabor dos outros temperos. A s folhas usadas no cozimento devem ser descartadas. Os acompanhamentos indicados são arroz branco, farinha de mandioca e pimenta.
Francamente, não levei muita fé enquanto preparava o cozido. Aquelas folhas todas tinham odores e sabores estranhos. O tucupi não lembra nada que se conheça aqui no Sul. O cheiro mais aproximado em que consegui pensar foi maracujá. Não errei muito: o sabor é cítrico e lembra um pouco frutas como maracujá, limão e cupuaçu. E é bom. Muito bom. A primeira bocada do pato foi decepcionante, porque o tucupi não tomou conta do sabor — o que, aliás, é uma qualidade da receita: pato tem de ter gosto de pato, apenas com um fundo dos temperos. O molho resultante, porém, apresentou um gosto totalmente novo para mim. Difícil parar de comê-lo misturado ao arroz e à farinha de mandioca, com bastante pimenta vermelha. O próprio agrião, ingrediente que vi com mais reticência, acentua os sabores do tucupi e o pato.
Sei que ficou bom, mas não sei é se ficou parecido com o que deveria. É o problema de tentar pratos que nunca se provou.
(Publicado originalmente na edição 37, de março de 2006, da revista Semana 3)
Desde que comprei “Viagem gastronômica através do Brasil”, de Caloca Fernandes (editora Senac, R$ 95), sou fascinado por tucupi. Trata-se de um caldo amarelo-ovo retirado durante a prensagem da mandioca-brava, temperado com chicória, alfavaca e sal. É um tipo de “fugu” brasileiro — aquele peixe que tem veneno nas vísceras e pode matar o cliente do sushi bar se não for preparado por um especialista —, já que a mandioca-brava contém ácido cianídrico. Deve-se confiar que o produtor do tucupi ferveu o caldo pelas horas necessárias para decompor toda a substância venenosa.
O molho resultante é usado na preparação de dois dos pratos mais famosos da culinária do Norte: tacacá e pato no tucupi. Como o colega André “Cardoso” Czarnobai foi a Belém do Pará há algumas semanas, exigi que me trouxesse uma garrafa de contrabando. A idéia inicial era preparar um tacacá, mas infelizmente descobri que é impossível encontrar camarão seco em qualquer ponto do Rio Grande do Sul. Daniel Pellizzari, escritor e amazonense, respondeu da seguinte forma à pergunta “posso substituir camarão seco por fresco?”: “Nunca comi com camarão fresco, mas SEI que fica horrendo só de imaginar”. Ataquemos de pato no tucupi, então.
Outro problema para levar a cabo a empreitada era a inexistência de jambu a menos de 8 mil quilômetros de Porto Alegre. De acordo com o livro, porém, ele pode ser substituído por agrião, embora este não apresente a capacidade de amortecer a boca. O sabor é parecido. Chicória-do-Maranhão foi outra planta impossível de conseguir. No entanto, parece que seu gosto é semelhante ao do coentro, não à chicória tradicional do Sul — o motivo do nome é o formato serrilhado da folha, não o gosto —, então fui de coentro mesmo. Ao menos a alfavaca, ou majericão-de-folha-larga, foi obtida com uma simples visita ao supermercado. O pato veio da granja da minha avó. Espero que não fosse o pato preferido de nenhum dos meus priminhos.
A receita de Caloca Fernandes é a seguinte:
— um pato novo de mais ou menos 1,5 kg
— 4 xícaras de tucupi
— 4 dentes de alho amassados
— 4 colheres de sopa de azeite de oliva
— folhas de jambu, chicória e alfavaca
— sal e pimenta do reino
A autora diz para cortar o pato em pedaços na véspera e temperar com o azeite, o alho, o sal e a pimenta. Como ele ainda estava congelado e eu não acredito muito nessas vinhas d’alho de um dia para o outro, fiz isso umas duas horas antes de cozinhar. Depois, assa-se o pato por 40 minutos no forno a 180°C, ou até dourar. Os pedaços da ave são então transferidos para uma panela, regados com o tucupi e cozidos até ficarem macios junto com as folhas de jambu, chicória e alfavaca. Como disse, usei agrião e coentro no lugar das duas primeiras. Aliás, nunca havia presenciado em todo seu fedor um maço de coentro fresco. Até esta ocasião, havia usado somente os grãos. Rezei para que o gosto da erva não fosse parecido com o odor. Imaginem o que deve ser essa tal chicória deles, cujo nome científico é “Eryngium foetidum”.
Cozinhei por mais uns 45 minutos. Quando pronto, deve-se dispor os pedaços de pato em uma sopeira ou forma, espalhar folhas frescas de jambu por cima dele e regar tudo com o tucupi quente, cheio de gordura de pato e do sabor dos outros temperos. A s folhas usadas no cozimento devem ser descartadas. Os acompanhamentos indicados são arroz branco, farinha de mandioca e pimenta.
Francamente, não levei muita fé enquanto preparava o cozido. Aquelas folhas todas tinham odores e sabores estranhos. O tucupi não lembra nada que se conheça aqui no Sul. O cheiro mais aproximado em que consegui pensar foi maracujá. Não errei muito: o sabor é cítrico e lembra um pouco frutas como maracujá, limão e cupuaçu. E é bom. Muito bom. A primeira bocada do pato foi decepcionante, porque o tucupi não tomou conta do sabor — o que, aliás, é uma qualidade da receita: pato tem de ter gosto de pato, apenas com um fundo dos temperos. O molho resultante, porém, apresentou um gosto totalmente novo para mim. Difícil parar de comê-lo misturado ao arroz e à farinha de mandioca, com bastante pimenta vermelha. O próprio agrião, ingrediente que vi com mais reticência, acentua os sabores do tucupi e o pato.
Sei que ficou bom, mas não sei é se ficou parecido com o que deveria. É o problema de tentar pratos que nunca se provou.
(Publicado originalmente na edição 37, de março de 2006, da revista Semana 3)
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