Monday, March 20, 2006

Ricardo Meirelles, mar/abr de 2005

Expressão da moda



“Quando o poeta diz lata”, nos ensina o hoje ministro da Cultura Gilberto Gil na bela letra de “Metáfora”, “pode estar querendo dizer o incontível”. Quando alguém diz desenvolvimento sustentável, nos ensina a leitura do noticiário, pode estar querendo dizer... qualquer coisa. Licença poética pra quê, se as folhas dos jornais garantem ampla, irrestrita divulgação de qualquer figura de linguagem, qualquer catacrese, principalmente se produzida por economistas?

Talvez a única exigência seja usar desenvolvimento sustentável como indicativo de coisa boa. No discurso da equipe econômica, Antonio Palocci e Henrique Meirelles à frente, a expressão parece ter se transformado numa maravilha curativa capaz de explicar ou justificar quaisquer medidas impopulares, freqüentemente incongruentes. Os juros estão na Lua? Ora, mas isso é fundamental na busca por um desenvolvimento sustentável. Baixar os juros? Também. Reformar a Reforma da Previdência? Sim, isso é parte essencial de uma trajetória rumo ao desenvolvimento sustentado.
Essa tem sido a alternativa preferida à expressão “país do futuro” — desgastada, datada, com ranço de ditadura militar. Desenvolvimento sustentável a substitui com vantagens: entrou na moda há menos tempo e não inclui “futuro”, palavrinha que na economia brasileira teima em se associar a “inalcançável“. É como se ela tivesse o dom de tornar “país” mais próximo de “do futuro” — mas numa proximidade lenta, turva, que não tem sequer compromisso de virar encontro.

Certamente desenvolvimento sustentável não quer dizer, nos lábios de economistas ou indústrias, o mesmo que significa quando pronunciada, por exemplo, pela ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Às vezes aponta para sentidos apenas diferentes. Às vezes para sentidos opostos — Antonio Ermírio de Moraes, presidente do Conselho de Administração do Grupo Votorantim, enche a boca ao falar da contribuição de novas usinas hidrelétricas ao desenvolvimento sustentável do país, as mesmas usinas que o IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) embarga por temer danos ao desenvolvimento sustentável brasileiro.

Em geral, quando os ambientalistas dizem desenvolvimento sustentável se referem ao conceito elaborado pela Comissão Brundtland, das Nações Unidas, nos anos 80: um tipo de desenvolvimento que não afeta as bases do próprio desenvolvimento, que não prejudica nem a geração atual nem as gerações futuras. Entre os pontos centrais estão uso não-predatório dos recursos naturais e combate à miséria.

Para os economistas, é algo um tanto diverso. Refere-se à capacidade de um país crescer por longo prazo sem criar pressões de demanda (em linguagem corintiana: consumo excessivo) que possam desencadear alta persistente nos preços (inflação). Sob esse ponto de vista, o espantoso crescimento econômico da China na última década pode ser visto como desenvolvimento sustentável — agora, pergunte a um ecologista se ele acha que haverá uma árvore sustentada em pé se o atual padrão chinês de expansão durar muito mais tempo.

Um dos poucos economistas que merecem o status de pensador, Celso Furtado (1920-2004) argumentaria que o buraco é ainda mais embaixo. Num belo livro chamado “O Mito do Desenvolvimento Econômico” (publicado em 1974, quando o Brasil crescia o tanto que hoje cresce a China), ele aponta que o problema é o modelo de desenvolvimento baseado na desigualdade e na introdução contínua de novos produtos, em substituição aos que passam a ser considerados “ultrapassados” (e olha que naquela época não existiam celulares nem softwares da Microsoft).

“O custo, em termos de depredação do mundo físico, desse estilo de vida é de tal forma elevado que toda tentativa de generalizá-lo levaria inexoravelmente ao colapso de toda uma civilização, pondo em risco a sobrevivência da espécie humana”, escreve Furtado. Assim, conclui, “o desenvolvimento econômico — a idéia de que os povos pobres podem algum dia desfrutar das formas de vida dos atuais povos ricos — é simplesmente irrealizável”.

“Quando o poeta diz meta”, nos ensina o hoje ministro da Cultura Gilberto Gil na bela letra de “Metáfora”, “pode querer estar dizendo o inatingível”. Para nossa felicidade, seria bom que economistas não produzissem metáforas com a mesma profusão que os poetas.

(Publicado originalmente na edição 29, de mar/abr de 2005, da revista Semana 3)