Monday, March 20, 2006

Ricardo Meirelles, agosto de 2004

Quando o pajé desconfia



Os relatórios de consultorias e bancos de investimento, os papers das corretoras, os documentos do Banco Central ou do Ministério da Fazenda exalam, freqüentemente, uma arrogância que tem muito a ver com um tipo de imagem que pretendem passar: a de equilíbrio, sobriedade. Essa postura costuma produzir discursos de tom insípido e pode ser resumida por uma expressão muito cultivada no métier, mas que não quer dizer quase nada: “racionalidade econômica”.

A bem da verdade, as decisões nessa área por vezes assemelham-se mais a apostas intuitivas, palpites presunçosos, jogo de búzios, elixir de curandeiro. Que o diga o irrequieto ziguezague das Bolsas de Valores e das taxas de câmbio, es-tampado quase todos os dias nas páginas dos jornais. Que o diga, também, a desmesurada beatice com que alguns economistas se apegam às recomendações de manuais produzidos nos países ricos. Comparar suas determinações às maravilhas-curativas de druidas e pajés é ser desprestigioso a druidas e pajés — como nos demonstra o impagável “O Elixir do Pajé”, poema mundano de Bernardo Guimarães publicado em 1888, antecipando em mais de um século os poderes do Viagra.

No entanto, vez ou outra os próprios pajés do mundo moderno mostram desconfiança sobre o remédio que tantas vezes recomendaram. É o que acontece, por exemplo, em um relatório recém-divulgado pelo Banco Mundial, intitulado “Reformar a infra-estrutura: privatização, regulação e concorrência”. Nele, há trechos que anos atrás talvez só pudessem ser atribuídos ao Instituto de Economia da Unicamp — um bunker de extrema-esquerda se comparado ao Banco Mundial — ou a assessores da bancada parlamentar do PT (pré-governo Lula, claro).

Rememora-nos o insuspeito World Bank: “Durante boa parte dos anos 90, a privatização era proclamada o elixir que transformaria as enfermas e letárgicas empresas estatais em fontes de produtividade criativa e dinamismo a serviço do interesse público”. Os governos dos países em desenvolvimento prometiam que a transferência do patrimônio para a iniciativa privada iria finalmente acelerar a expansão econômica. Instituições financeiras e organismos multilaterais (incluindo o Banco Mundial, mas isso não está explícito no relatório) colocaram-se samaritanamente à disposição para levar o processo à frente. “Os meios de comunicação globais, de forma quase uníssona, louvaram esse avanço na elaboração de políticas”, diz o estudo.

E assim se passaram muitos anos... Hoje, a maioria da população dos países latino-americanos desaprova a privatização – o Brasil, onde pouco mais de 60% reprova a atuação das empresas privadas, é o mais condescendente entre os sete países pesquisados pelo instituto Latinobarometro (a Argentina, onde a desaprovação encosta nos 90%, é a mais crítica ao processo). Constata o World Bank: “Como todo elixir econômico, a privatização foi supersimplificada, superestimada e, no final das contas, frustrante — cumprindo menos do que foi prometido”. Há um box especialmente pedagógico no relatório, intitulado “Geração de energia no Brasil mostra que a privatização não é sempre a melhor saída”.

Sim, desconfiado leitor, trata-se do mesmo Banco Mundial que na década de 90 promovia a privatização com insistência de fazer inveja a vendedor de enciclopédia (ok, a internet envelheceu essa metáfora; digamos então “de fazer inveja a esses que nos ligam um dia sim outro também para estar nos empurrando a última novidade em cartão de crédito”).

E por que a grande imprensa brasileira não deu uma linha sobre o relatório? Para isso leiam, na edição passada e nesta, o artigo de meu colega de coluna na Semana 3, Wagner Geribello.

PS: A propósito, o relatório, em inglês, está disponível na internet: http://econ.worldbank.org/prr/reforming_infrastructure/.

(Publicado originalmente na edição 25, de agosto de 2004, da revista Semana 3)