Monday, March 20, 2006

Ricardo Meirelles, junho de 2004

A metáfora da dona de casa



Muito se tem falado sobre a profusa quantidade de metáforas produzidas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em seus discursos. Os jornais, as revistas, os comentaristas de rádio, os humoristas, todos eles se debruçam vez ou outra sobre o assunto. O pessoal do Casseta & Planeta também tira uma casquinha sempre que pode; a última deles, pelo que me lembro, era que Lula voltou da China com a idéia de que conhecera um promissor mercado comprador de metáforas.

Hoje, na estréia desta coluna, não vou me ater à figura de linguagem presidencial - que, aliás, nem sei se metáfora é: numa rápida conversa que tive sobre o assunto com o lingüista Sírio Possenti, aqui de Barão Geraldo, ele ponderava que o que Lula faz tem cara mesmo é de parábola. Não vou me ater, tampouco, a metáforas exportáveis. Ficarei com uma que importamos há alguns anos e que encontrou mercado farto em certas colunas econômicas, em bancos e corretoras e, especialmente, no Ministério da Fazenda: a metáfora da dona de casa.

Pedro Malan e seus comparsas usavam-na com freqüência; Antonio Palocci, ao comprar o kit completo de seu antecessor, trouxe junto esse hábito. O leitor já a ouviu e sabe que ela aparece quase sempre no seguinte contexto: o governo deve fazer, com suas contas, o que faz a dona de casa - gastar só o que a família ganha. É uma maneira de dizer que o setor público não pode gastar mais do que arrecada e que deve economizar dinheiro para pagar suas dívidas (ou seja, registrar o que em economês se chama de superávit primário).

A metáfora é ruim, por vários motivos. Um deles: não encontra respaldo na realidade dos brasileiros, como mostrou recentemente a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF, para os íntimos), uma espécie de raio-x feito periodicamente pelo IBGE sobre os gastos das famílias do país. Está claro lá: a maioria dos brasileiros tem dificuldade em pagar todas suas despesas. Em números: o IBGE dividiu as famílias em dez faixas, de acordo com o rendimento mensal; só nas faixas que agrupam famílias com renda superior a R$ 3 mil por mês (14,67% das famílias brasileiras) gasta-se menos do que se recebe. Ou, como resumiu uma feliz manchete do "Jornal do Brasil": "Sobra mês no fim do salário".

Outro motivo: não encontra respaldo na realidade financeira. Uma dona de casa endividada não pode decidir sobre as taxas de juros que corrigem seus débitos, o Estado pode (R$ 426 bilhões da dívida pública brasileira, ou 46% do total, é indexada pela Selic, aquela taxa que o Banco Central estipula mensalmente). Pode-se argumentar que, na prática, o BC sofre limitações de diversos tipos, o que é verdade, mas limitação não quer dizer impossibilidade. Além disso, a dona de casa não dispõe de uma Casa da Moeda, não emite dinheiro para comprar verduras na feira, pagar o pão na padaria ou arcar com a passagem de ônibus - ao contrário do Estado (claro que também aí há limitações, mas, repito, limitação não quer dizer impossibilidade).

É pena, de qualquer modo, que os economistas não levem a metáfora um pouco mais adiante. Eles lançam mão dela para argumentar que é preciso economizar dinheiro a fim de pagar dívidas. Mas o que faria uma dona de casa se lhe sobrasse uns trocados no final do mês: compraria o remédio para o filho que tem sérios problemas de saúde ou pagaria a dívida no banco? O mínimo que se pode dizer é que a escolha não é tão óbvia como tem sugerido o discurso e a prática do Ministério da Fazenda, que deixa o país adoecer enquanto garante a poucos uma polpuda terapia.

(Publicado originalmente na edição 24, de junho de 2004, do jornal Semana 3)