Monday, March 20, 2006

Ricardo Meirelles, fevereiro de 2005

Onda de hipocrisia



Insiste em não ser comovente a triste gincana (quem dá mais? quem dá mais?) em que se transformaram as promessas dos países ricos de ajudar as vítimas do maremoto que, em 26 de dezembro, varreu o Sudeste Asiático e a costa leste da África, matando mais de 150 mil pessoas.

As últimas cifras que vi indicavam que os doadores haviam se comprometido a liberar US$ 3 bilhões aos países atingidos pelos tsunamis. A Austrália liderava (US$ 756 milhões), embora George Walker Bush, que inicialmente avaliara que US$ 35 milhões eram mais do que suficiente, tenha falado mais recentemente em conceder US$ 950 milhões dos cofres do governo norte-americano. O leitor confia?

A verdade é que o retrospecto não ajuda. Com desanimadora freqüência, as promessas feitas no calor do noticiário são esquecidas pouco depois que se enterram os mortos e que a imprensa substitui a cobertura diária dessas catástrofes humanitária por notas esparsas e microscópicas.
Para sintetizar em um caso recente e emblemático: exatamente um ano antes dos tsunamis, em 26 de dezembro de 2003, um terremoto abalou a cidade história de Bam, no Irã, e matou 26 mil pessoas; a benevolência internacional ofereceu, na ocasião, US$ 1 bilhão em ajuda humanitária. Passados 12 meses, o governo iraniano havia recebido exíguos US$ 120 milhões.

Mas não é só nas tragédias de épico desespero que a boca dos governantes dos países ricos parece ser desproporcionalmente maior que o bolso. Em 2000, durante a Cúpula do Milênio (a maior reunião de líderes mundiais da história), os países da ONU se comprometeram a alcançar uma série de metas socioeconômicas para melhorar as condições de vida até 2015. Agrupadas, essas metas deram origem aos oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, que englobam áreas como pobreza, educação, saúde, meio ambiente e gênero.

Desses oito objetivos, apenas um se refere aos países desenvolvidos. Ele prevê, por exemplo, que as nações industrializadas aumentem até 2015 a ajuda humanitária para o equivalente a 0,7% do Produto Interno Bruto (PIB) — uma meta hoje só cumprida por cinco países: Noruega (1%), Luxemburgo (1%), Suécia (0,87%), Dinamarca (0,83%) e Holanda (0,80%); na lanterna repousam os Estados Unidos (0,17%).

Um estudo divulgado em janeiro pela ONU, o Projeto do Milênio, dirigido pelo economista Jeffrey Sachs, contabiliza outro ponto: quanto os países ricos precisam doar para ajudar os países pobres a cumprirem os outros sete Objetivos do Milênio (como reduzir a pobreza pela metade até 2015). Em 2002, observa o relatório, foram destinados US$ 65 milhões em ajuda humanitária aos países em desenvolvimento; para os Objetivos serem atingidos, seria necessário dobrar esse volume em 2006 (US$ 135 bilhões) e triplicá-lo em 2015 (US$ 195 bilhões).

Esses números todos e esse amontoado de “ões” podem turvar um pouco a dimensão do problema e dar a impressão de que cifras como essas são inatingíveis. Ledo engano. O próprio relatório traz uma comparação didática nesse sentido: “a exigência de dobrar a ajuda oficial ao desenvolvimento para US$ 135 bilhões em 2006, aumentando para US$ 195 bilhões em 2015, não é tão significativa quando comparada à riqueza dos países de alta renda — e ao orçamento militar mundial de US$ 900 bilhões por ano”. Sim, você leu direito: os países em desenvolvimento precisam de US$ 195 bilhões para erradicar a miséria e a fome, universalizar o ensino primário e realizar outras melhorias sociais. E os gastos militares no mundo são quatro vezes maiores que isso: US$ 900 bilhões.

Os países ricos torcem o nariz para esses dados e argumentam que financiar mercados emergentes não é como dar dinheiro ao ceguinho da esquina: corre-se o risco de que as verdinhas se engolfem por meandros podres e caiam nas mãos de políticos corruptos em países com parca tradição de transparência. Há algo de verdade nisso, mas o argumento omite que a corrupção é freqüentemente alimentada pelo próprio jogo de forças internacionais e esquece que há, mesmo nos países com farto histórico de corrupção, organizações não-governamentais que trabalham seriamente.

(Publicado originalmente na edição 28, de fevereiro de 2005, da revista Semana 3)