Ricardo Meirelles, maio de 2005
Discursos e reformas
Saiu do forno a versão mais recente do relatório “Perspectivas para a Economia Mundial”, publicado duas vezes ao ano, em abril e setembro, pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Vale a pena perder algum tempo folheando o documento — ou navegando por ele, pois está disponível na internet (http://www.imf.org/external/pubs/ft/weo/2005/01/index.htm). Não só pelo argumento de autoridade implícito em qualquer murmúrio produzido pela equipe do Fundo, mas também porque apresenta, a preço de banana, o texto que será reescrito por alguns bancos privados e oferecido nos próximos meses, a preço de caviar.
Como sói acontecer nesse tipo de estudo, o Fundo dá uma no cravo e outra na ferradura. Faz lá seus elogios ao Brasil, mas adverte que o país deve “implementar sua agenda de reformas”. No texto, há menção às reformas tributária e da Previdência; em entrevista em Washington, o chefão do FMI, o espanhol Rodrigo Rato, falou sobre a necessidade de reforma orçamentária e trabalhista. Basta folhear os jornais por alguns dias que ampliaremos a lista: reforma política, reforma sindical, reforma na lei de falências e na atuação do Banco Central, reforma administrativa, reforma agrária e reforma universitária.
Também no conjunto de entrevistas para divulgar o relatório, o economista-chefe do Fundo, o indiano Raghuran Rajan, relacionou as reformas a algo que hoje faz brilhar os olhos de qualquer brasileiro: a possibilidade de o país ter juros civilizados. “As reformas estruturais devem ser feitas para reduzir as taxas de juros”.
Curioso esse apelo das “reformas”. Repare o leitor que parte da lista se renova de tempos em tempos (reforma universitária, por exemplo, é relativamente recente; reforma administrativa já aparece mais raramente do que no começo do governo Fernando Henrique Cardoso), parte se repete em discursos ao longo do tempo (como reforma agrária, presente já nas Reformas — olha a palavrinha aí de novo — de Base de João Goulart).
Certamente, a permanência dessas expressões em governos tão distintos (bom, talvez não tão distintos assim) reflete a percepção de que muita coisa vai mal e precisa ser alterada. Difícil discordar, por exemplo, de que algumas leis trabalhistas perderam sentido hoje em dia, ou de que a carga excessiva de impostos precisa mesmo ser revista.
No entanto, quer porque não se concretizam, quer porque não se concretizam do modo esperado, quer porque não fazem mesmo diferença alguma, as reformas — tal como evocadas nos últimos anos — deixaram de ser apenas propostas de mudanças em determinadas áreas do país. Transformaram-se em ladainha para forjar esperanças.
Sim, as “reformas” talvez tenham uma função, digamos, psicossocial. Estipula-se, preferencialmente com palavras de sentido difuso, uma meta a ser alcançada (“desenvolvimento sustentável” tem sido a mais comum, como comentei na coluna da edição passada de Semana 3). Frente a essa meta, o discurso das “reformas” acena com passos supostamente concretos, como a indicar que existe um caminho claro, não-disputado, incontroverso, e que para segui-lo basta cumprir determinadas etapas, uma espécie de via-sacra que, ainda que envolva sofrimento, nos garanta um lugar no mundo desenvolvido.
Na prática, não é o que ocorre. As reformas não são incontroversas, muito ao contrário — basta ver a tributária, que se arrasta há anos, ou a trabalhista, que é suficientemente sensível a ponto de governo algum até agora ter tido coragem de tocá-la adiante.
As reformas também não são maravilha curativa, não são milagres. Tome-se o caso da reforma administrativa que envolveu privatizações e concessões; alguns serviços de fato melhoraram, outros decepcionaram (a concessão das ferrovias talvez seja o exemplo mais flagrante). A solução de alguns problemas resultou em novos problemas (para citar um exemplo, digamos, exemplar: rodovias com menos buracos, mas com pedágios mais caros).
Curioso, por fim, que em momento algum a lista de reformas faça menção explícita à carga insustentável da dívida brasileira. Bom, mas esse já é assunto para outra coluna.
(Publicado originalmente na edição 30, de maio de 2005, da revista Semana 3)
Saiu do forno a versão mais recente do relatório “Perspectivas para a Economia Mundial”, publicado duas vezes ao ano, em abril e setembro, pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Vale a pena perder algum tempo folheando o documento — ou navegando por ele, pois está disponível na internet (http://www.imf.org/external/pubs/ft/weo/2005/01/index.htm). Não só pelo argumento de autoridade implícito em qualquer murmúrio produzido pela equipe do Fundo, mas também porque apresenta, a preço de banana, o texto que será reescrito por alguns bancos privados e oferecido nos próximos meses, a preço de caviar.
Como sói acontecer nesse tipo de estudo, o Fundo dá uma no cravo e outra na ferradura. Faz lá seus elogios ao Brasil, mas adverte que o país deve “implementar sua agenda de reformas”. No texto, há menção às reformas tributária e da Previdência; em entrevista em Washington, o chefão do FMI, o espanhol Rodrigo Rato, falou sobre a necessidade de reforma orçamentária e trabalhista. Basta folhear os jornais por alguns dias que ampliaremos a lista: reforma política, reforma sindical, reforma na lei de falências e na atuação do Banco Central, reforma administrativa, reforma agrária e reforma universitária.
Também no conjunto de entrevistas para divulgar o relatório, o economista-chefe do Fundo, o indiano Raghuran Rajan, relacionou as reformas a algo que hoje faz brilhar os olhos de qualquer brasileiro: a possibilidade de o país ter juros civilizados. “As reformas estruturais devem ser feitas para reduzir as taxas de juros”.
Curioso esse apelo das “reformas”. Repare o leitor que parte da lista se renova de tempos em tempos (reforma universitária, por exemplo, é relativamente recente; reforma administrativa já aparece mais raramente do que no começo do governo Fernando Henrique Cardoso), parte se repete em discursos ao longo do tempo (como reforma agrária, presente já nas Reformas — olha a palavrinha aí de novo — de Base de João Goulart).
Certamente, a permanência dessas expressões em governos tão distintos (bom, talvez não tão distintos assim) reflete a percepção de que muita coisa vai mal e precisa ser alterada. Difícil discordar, por exemplo, de que algumas leis trabalhistas perderam sentido hoje em dia, ou de que a carga excessiva de impostos precisa mesmo ser revista.
No entanto, quer porque não se concretizam, quer porque não se concretizam do modo esperado, quer porque não fazem mesmo diferença alguma, as reformas — tal como evocadas nos últimos anos — deixaram de ser apenas propostas de mudanças em determinadas áreas do país. Transformaram-se em ladainha para forjar esperanças.
Sim, as “reformas” talvez tenham uma função, digamos, psicossocial. Estipula-se, preferencialmente com palavras de sentido difuso, uma meta a ser alcançada (“desenvolvimento sustentável” tem sido a mais comum, como comentei na coluna da edição passada de Semana 3). Frente a essa meta, o discurso das “reformas” acena com passos supostamente concretos, como a indicar que existe um caminho claro, não-disputado, incontroverso, e que para segui-lo basta cumprir determinadas etapas, uma espécie de via-sacra que, ainda que envolva sofrimento, nos garanta um lugar no mundo desenvolvido.
Na prática, não é o que ocorre. As reformas não são incontroversas, muito ao contrário — basta ver a tributária, que se arrasta há anos, ou a trabalhista, que é suficientemente sensível a ponto de governo algum até agora ter tido coragem de tocá-la adiante.
As reformas também não são maravilha curativa, não são milagres. Tome-se o caso da reforma administrativa que envolveu privatizações e concessões; alguns serviços de fato melhoraram, outros decepcionaram (a concessão das ferrovias talvez seja o exemplo mais flagrante). A solução de alguns problemas resultou em novos problemas (para citar um exemplo, digamos, exemplar: rodovias com menos buracos, mas com pedágios mais caros).
Curioso, por fim, que em momento algum a lista de reformas faça menção explícita à carga insustentável da dívida brasileira. Bom, mas esse já é assunto para outra coluna.
(Publicado originalmente na edição 30, de maio de 2005, da revista Semana 3)
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