Monday, March 20, 2006

Ricardo Meirelles, junho de 2005

Microcrédito



É consensual (até onde essa palavra pode ser usada em política e economia) que uma das principais inovações do atual governo, na área econômica, seja a introdução ou a intensificação de mecanismos de estímulo ao crédito. Antes que o leitor vá logo torcendo o nariz e virando a página diante de assunto enfadonho, adianto: o tema expõe uma das principais características do sistema financeiro brasileiro — sua resistência aos clientes de baixa renda — e esconde uma bomba-relógio que, se não desarmada com cuidado, poderá fazer estragos à imagem do presidente Lula, o que pode ser ruim, ou ao bolso de muitos brasileiros, o que é pior.

Comecemos pela profusão de novas linhas de microcrédito, tipo de empréstimo de pequenas quantias, com menos garantias e sob condições menos rigorosas que as geralmente impostas a quem toma dinheiro no banco. O governo já lançou esse tipo de financiamento para pequenos agricultores, empregados libertados de regimes de trabalho forçado (eufemismo às favas: escravidão) e microempresários.

Houve também estímulo para que os bancos concedessem empréstimos mais baratos a pessoas pobres. O resultado foi pífio. As instituições financeiras preferiram deixar seu dinheiro (em economês: parte do depósito compulsório à vista) no Banco Central a emprestá-lo a clientes teoricamente de risco (e o “teoricamente” aí não se refere à teoria econômica, às pesquisas na área, que de resto mostram que os clientes de baixa renda pagam suas dívidas com pontualidade britânica; é um eufemismo, mais um, para preconceito mesmo).

O economista Paul Singer, professor da USP e atualmente secretário nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho, costuma dizer que o sistema financeiro — não só no Brasil, frise-se — é “blindado contra pobres”: do gerente ao segurança, são raros os casos em que alguém permite que um pé descalço entre, que dirá seja atendido, em uma agência.

Não por acaso, em um de seus mais ambicio¬sos programas na área o governo criou um intermediário para lidar direto com esse público: organizações não-governamentais é que vão tratar de emprestar (a bem da verdade: repassar) recursos a pequenos empresários. Ou seja, tirando os bancos da jogada, ou pelo menos do confronto direto no campo, a expectativa é de a coisa agora vai.

Mais dispostos os bancos têm se mostrado em relação a outra modalidade nova de crédito: o crédito consignado, aquele descontado diretamente na folha de pagamento, no que nós paulistas costumamos chamar de holetire. Esse é o tipo de empréstimo à pessoa física (horrível essa expressão, não?) que mais cresce no Brasil hoje em dia.

Peço licença e paciência ao leitor para desfilar uma fornada recente de números sobre o assunto. Segundo pesquisa do Banco Central com 13 bancos que atuam no setor, em abril os empréstimos com desconto em folha somavam R$ 16,549 bilhões — 31,2% a mais que em abril de 2004. Esse tipo de financiamento representava 31,6% do total de crédito pessoal concedido pelas instituições financeiras; no começo do ano passado ultrapassava um pouco a casa dos 20%.

Esse crescimento acelerado tem um segredo simples: as taxas de juros são muito mais baixas nos empréstimos com desconto em folha. Em abril, a taxa era de 36,5% ao ano — contra 75%, em média, cobrados nas operações de crédito pessoal. Como os bancos vêm menor risco de levar calote, aceitam oferecer juro menor.

Tudo muito bom, tudo muito bem. Mas só enquanto a economia está crescendo. Quando e se o país entrar em marcha lenta (e isso está longe de ser improvável já nos próximos trimestres), o desemprego em alta vai gerar um problema de difícil solução: quem tomou dinheiro nos meses de festa terá que arcar com a dívida na hora da ressaca, sem emprego e sem saída.

Trabalhadores e bancos, ao que parece, já perceberam a ameaça. Não por acaso, mais da metade desses empréstimos vão para pessoas que não podem ser demitidas: funcionários públicos e aposentados e pensionistas do INSS. Mais ainda aí resta um problema.

Funcionários públicos e aposentado estão entre as categorias que menos recebem reajustes. O empréstimo que hoje abocanha um quarto da renda terá peso significativamente maior daqui a um, dois anos. Se as coisas continuarem como estão, o estrago não será pequeno.

(Publicado originalmente na edição 31, de junho de 2005, da revista Semana 3)

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