Ricardo Meirelles, ago/set de 2005
Rouba, mas faz crescer
Talvez tenha sido o depoimento do marqueteiro Duda Mendonça, talvez o mal-explicado rolo entre Fábio Luis Lula da Silva e a Telemar, talvez a confissão do presidente do PL, Valdemar Costa Neto, de que houve caixa 2 na campanha presidencial do PT. O fato, o leitor bem sabe, é que com freqüência cada vez maior a palavra impeachment volta ao convívio dos brasileiros.
Não discutirei aqui se há base legal ou política para defenestrar Luiz Inácio Lula da Silva. Por contraditório que pareça, acho que esse é o ponto central, o “busílis da questão”, como dizia Florestan Fernandes, para retomar um saudoso petista. E, em tempos de dinheiro saindo pelo ladrão — pela cueca talvez seja mais preciso —, essa até poderia ser uma seara em que uma coluna intitulada Papel Moeda se sentiria à vontade. O que me tem chamado a atenção, porém, é um argumento que surgiu logo que o impedimento do presidente deixou de ser discutido apenas à boca pequena, um argumento que foge do tal busílis, a meu ver, e que no entanto tem se disseminado rapidamente.
O raciocínio é, basicamente, o seguinte: ok, o governo está fragilizado, mostra dificuldade em aprovar projetos de relevância, há dúvidas tão incômodas quanto pertinentes pairando sobre o presidente, dizer que ele não sabia de nada parece fazer pouco sentido, mas tirá-lo agora do cargo significaria comprometer a imagem do Brasil junto aos investidores — dois impeachments em tão pouco tempo, hum, melhor evitar —, injetaria incerteza na economia e cancelaria de vez o tal espetáculo do crescimento que Lula prometera. O dólar dispararia, a Bolsa de Valores cairia, a inflação poderia voltar a assustar, o desemprego subiria — enfim, seria ruim para todo mundo e ameaçaria uma das poucas áreas em que o governo vai bem, a economia.
O tom pragmático, a preocupação amedrontada com a economia — esse tipo de discurso há pouco facilmente indicaria o campo a que pertence seu emissor. Mas tenho visto e ouvido esse argumento tanto de petistas convictos (claro, até onde essa expressão é aplicável nos dias de hoje) quanto de críticos vorazes do PT. Acho que há vários problemas nesse tipo de raciocínio. Começo pelo menor.
O desempenho da economia brasileira certamente não é vexaminoso. O Produto Interno Bruto (PIB, soma de todos os bens e serviços produzidos no país em determinado período) saltou 5,2% no ano passado e deve ficar entre 3% e 4% este ano, se nada de extraordinário acontecer. O problema é achar que isso é um desempenho glorioso, ou mesmo suficiente. Não é. Vários países em desenvolvimento devem crescer mais do que o Brasil este ano, segundo previsão do Fundo Monetário Internacional: Argentina (6,0%), Chile (6,1%), China (8,5%), Colômbia (4,0%), Indonésia (5,7%), Índia (6,7%), Rússia (6,0%), Tailândia (5,6%), Turquia (5,0%) e Venezuela (4,6%), só para citar alguns. O FMI estima uma expansão de 3,7% para o Brasil, só superior à da Polônia (3,5%). Convenhamos: performance como essa não é algo que possa, por si só, justificar a permanência de um presidente no cargo.
O maior equívoco desse argumento, porém, é que ele repete, em nível macroeconômico, o mesmo princípio rasteiro que originou pelo menos parte importante da crise atual: o de que um fim financeiro legítimo justifica um meio ilegítimo. É legítimo preocupar-se — no sentido literal mesmo, pré-ocupar-se, começar a se ocupar de algo antes que esse algo aconteça — com o futuro da economia brasileira? Não há dúvida de que sim. É legítimo que Duda Mendonça, tendo prestado seus serviços com pirotécnica competência, receba o que lhe é devido? Não há dúvida de que sim. O problema é o passo seguinte. Para preservar sua saúde financeira, o marqueteiro abriu uma conta no exterior e recebeu de caixa 2. Para preservar a saúde financeira do país, quer-se poupar o presidente de investigações mais aprofundadas.
É como se o benefício de investigar indícios de irregularidade não compensasse o custo de ameaçar o crescimento econômico (em nada espetacular, como mostra a comparação com outros países). Parafraseando um slogan que Duda Mendonça não conseguiu tirar de circulação, é o rouba, mas faz crescer.
Certamente há argumentos melhores para defender que Lula termine seu mandato.
(Publicado originalmente na edição 33, de ago/set de 2005, da revista Semana 3)
Talvez tenha sido o depoimento do marqueteiro Duda Mendonça, talvez o mal-explicado rolo entre Fábio Luis Lula da Silva e a Telemar, talvez a confissão do presidente do PL, Valdemar Costa Neto, de que houve caixa 2 na campanha presidencial do PT. O fato, o leitor bem sabe, é que com freqüência cada vez maior a palavra impeachment volta ao convívio dos brasileiros.
Não discutirei aqui se há base legal ou política para defenestrar Luiz Inácio Lula da Silva. Por contraditório que pareça, acho que esse é o ponto central, o “busílis da questão”, como dizia Florestan Fernandes, para retomar um saudoso petista. E, em tempos de dinheiro saindo pelo ladrão — pela cueca talvez seja mais preciso —, essa até poderia ser uma seara em que uma coluna intitulada Papel Moeda se sentiria à vontade. O que me tem chamado a atenção, porém, é um argumento que surgiu logo que o impedimento do presidente deixou de ser discutido apenas à boca pequena, um argumento que foge do tal busílis, a meu ver, e que no entanto tem se disseminado rapidamente.
O raciocínio é, basicamente, o seguinte: ok, o governo está fragilizado, mostra dificuldade em aprovar projetos de relevância, há dúvidas tão incômodas quanto pertinentes pairando sobre o presidente, dizer que ele não sabia de nada parece fazer pouco sentido, mas tirá-lo agora do cargo significaria comprometer a imagem do Brasil junto aos investidores — dois impeachments em tão pouco tempo, hum, melhor evitar —, injetaria incerteza na economia e cancelaria de vez o tal espetáculo do crescimento que Lula prometera. O dólar dispararia, a Bolsa de Valores cairia, a inflação poderia voltar a assustar, o desemprego subiria — enfim, seria ruim para todo mundo e ameaçaria uma das poucas áreas em que o governo vai bem, a economia.
O tom pragmático, a preocupação amedrontada com a economia — esse tipo de discurso há pouco facilmente indicaria o campo a que pertence seu emissor. Mas tenho visto e ouvido esse argumento tanto de petistas convictos (claro, até onde essa expressão é aplicável nos dias de hoje) quanto de críticos vorazes do PT. Acho que há vários problemas nesse tipo de raciocínio. Começo pelo menor.
O desempenho da economia brasileira certamente não é vexaminoso. O Produto Interno Bruto (PIB, soma de todos os bens e serviços produzidos no país em determinado período) saltou 5,2% no ano passado e deve ficar entre 3% e 4% este ano, se nada de extraordinário acontecer. O problema é achar que isso é um desempenho glorioso, ou mesmo suficiente. Não é. Vários países em desenvolvimento devem crescer mais do que o Brasil este ano, segundo previsão do Fundo Monetário Internacional: Argentina (6,0%), Chile (6,1%), China (8,5%), Colômbia (4,0%), Indonésia (5,7%), Índia (6,7%), Rússia (6,0%), Tailândia (5,6%), Turquia (5,0%) e Venezuela (4,6%), só para citar alguns. O FMI estima uma expansão de 3,7% para o Brasil, só superior à da Polônia (3,5%). Convenhamos: performance como essa não é algo que possa, por si só, justificar a permanência de um presidente no cargo.
O maior equívoco desse argumento, porém, é que ele repete, em nível macroeconômico, o mesmo princípio rasteiro que originou pelo menos parte importante da crise atual: o de que um fim financeiro legítimo justifica um meio ilegítimo. É legítimo preocupar-se — no sentido literal mesmo, pré-ocupar-se, começar a se ocupar de algo antes que esse algo aconteça — com o futuro da economia brasileira? Não há dúvida de que sim. É legítimo que Duda Mendonça, tendo prestado seus serviços com pirotécnica competência, receba o que lhe é devido? Não há dúvida de que sim. O problema é o passo seguinte. Para preservar sua saúde financeira, o marqueteiro abriu uma conta no exterior e recebeu de caixa 2. Para preservar a saúde financeira do país, quer-se poupar o presidente de investigações mais aprofundadas.
É como se o benefício de investigar indícios de irregularidade não compensasse o custo de ameaçar o crescimento econômico (em nada espetacular, como mostra a comparação com outros países). Parafraseando um slogan que Duda Mendonça não conseguiu tirar de circulação, é o rouba, mas faz crescer.
Certamente há argumentos melhores para defender que Lula termine seu mandato.
(Publicado originalmente na edição 33, de ago/set de 2005, da revista Semana 3)
1 Comments:
best regards, nice info » » »
Post a Comment
<< Home