Marcelo Träsel, junho de 2004
Da arte de comer bem
Coisas da vida moderna. Recebe-se uma mensagem eletrônica convidando você a escrever sobre gastronomia em um jornal com tiragem de milhares de exemplares, impresso e distribuído em uma cidade que conhece só de nome. Gostoso saber que tem gente a mil quilômetros de distância interessada nas opiniões de um diletante da cozinha. É responsabilidade também e por isso resolvi estudar um pouco melhor o assunto. Vamos começar do começo: gastronomia, que bicho é este?
De acordo com o companheiro Houaiss, é tudo que envolve a prática e conhecimentos relacionados à arte culinária. Certo. Ele também diz que pode ser o prazer de apreciar pratos finos. Perdoem a impertinência, mas está errado. Houaiss nunca deve ter comido um bom ovo frito na hora com sal e um pouquinho de pimenta. A sua definição de gastrônomo está muito mais para a realidade: "aquele que aprecia com gosto e conhecimento os prazeres culinários." A boa notícia é que todos podemos ser gastrônomos, mesmo não sabendo fazer ou podendo pagar por pratos finos. Os pratos mais simples são em geral os que dão mais prazer.
E juro ter escrito isso antes de ler o que diz a Larousse Gastronomique, bíblia do assunto, a respeito. "O verdadeiro gastrônomo, tendo em alta estima os produtos mais refinados da arte culinária, não os utiliza senão com moderação. Ele procura, no cotidiano, as preparações mais simples, mas as mais difíceis de realizar com perfeição."
Pode-se deduzir, então, que comer bem não é ir ao restaurante francês mais famoso da cidade e participar de uma bacanal culinária envolvendo atos obscenos com trufas brancas e foie-gras, tudo regado com vinho francês a mais de R$ 1 mil a garrafa. Isso se chama orgia e tem seu valor, mas gastronomia é outra coisa.
Gastronomia é concentrar toda atenção e todo amor na preparação de um ovo cozido, de um sanduíche ou de uma simples salada. É conhecer e saber respeitar os alimentos. Coisa rara em tempos de fast-food e gente criada em apartamentos. Nunca deixo de me surpreender com amigos que nem sabem o que são jabuticabas ou carambolas e nunca viram uma vaca com todos os pedaços ainda grudados uns nos outros. Exceto por oxigênio e água, comida é a coisa mais importante do mundo. Vale a pena gastar algum tempo conhecendo alimentos que você vai ingerir três vezes por dia por, em média, 60 anos.
Porque cada alimento tem uma personalidade própria e combina com outros alimentos específicos. Cada vegetal se comporta de uma maneira ao fogo. Cada carne pede um tipo de tempero. Ao mesmo tempo em que é essencial à vida - e por esse motivo mesmo - a comida é sagrada. Você matou animais e plantas para comê-los. O mínimo que pode fazer é prepará-los decentemente e sem desperdícios. A recompensa é o prazer indescritível de morder um sanduíche de, digamos, pão branco fresquinho sem casca, coalhada e pepino cortado na hora. Parece muito simples? Acredite, é delicioso.
Você pode ler quantos livros quiser sobre comida e vinhos, vai aprender um monte sobre a história dos alimentos e curiosidades diversas, mas nada substitui a pesquisa de campo. Provar de tudo, em várias versões e modos de preparar diferentes. Escolher livros de culinária é também uma arte. A grande maioria serve apenas para ficarem sendo bonitos em cima da mesa da sala, com todas aquelas fotos apetitosas e receitas mal-explicadas. A não ser que seja muito bem recomendado, jamais compre um livro de culinária sem ler algumas receitas. Ao final da coluna, listo alguns bons livros. Percebam a predominância da editora Cia das Letras. Adquirir conhecimento gastronômico é uma questão de paciência e pesquisa. Passear no mercado e tentar conhecer cada espécie de vegetal, procurar perceber a diferença no sabor a cada mês do ano e quando estão frescos ou não. Dá um trabalho danado, mas vale a pena. Depois de algum tempo, volte àquele restaurante francês famoso. Você vai perceber o quanto o foie-gras ficou diferente. E muito melhor.
Leia mais
"O Homem que Comeu de Tudo", de Jeffrey Steingarten (Cia. das Letras). Steingarten é crítico de gastronomia da revista "Vogue" norte-americana e conta neste livro, com muito bom humor, como descobriu a gastronomia.
"Food: a History", de Felipe Fernández-Armesto (MacMillan). É importado e em inglês, mas essencial para quem se interessa em conhecer melhor a cultura gastronômica e humana em geral.
"Cozinha Confidencial", de Anthony Bourdain (Cia. das Letras). O chef nova-iorquino narra episódios de sua juventude nas melhores e piores cozinhas da cidade. De quebra, conta vários segredos e técnicas.
"Em Busca do Prato Perfeito", de Anthony Bourdain (Cia. das Letras). Desta vez o chef Bourdain dá uma volta culinária pelo mundo e pelo caminho vai explicando o que é gastronomia.
"La Cucina", de Marcella Hazan (Cia. das Letras). A cozinheira italiana se viu casada e de frente para um fogão aos 20 anos, sem saber o que fazer com ele. Descobriu sozinha e mostra o que é ter sensibilidade culinária.
(Publicado originalmente na edição 24, de junho de 2004, do jornal Semana 3)
Coisas da vida moderna. Recebe-se uma mensagem eletrônica convidando você a escrever sobre gastronomia em um jornal com tiragem de milhares de exemplares, impresso e distribuído em uma cidade que conhece só de nome. Gostoso saber que tem gente a mil quilômetros de distância interessada nas opiniões de um diletante da cozinha. É responsabilidade também e por isso resolvi estudar um pouco melhor o assunto. Vamos começar do começo: gastronomia, que bicho é este?
De acordo com o companheiro Houaiss, é tudo que envolve a prática e conhecimentos relacionados à arte culinária. Certo. Ele também diz que pode ser o prazer de apreciar pratos finos. Perdoem a impertinência, mas está errado. Houaiss nunca deve ter comido um bom ovo frito na hora com sal e um pouquinho de pimenta. A sua definição de gastrônomo está muito mais para a realidade: "aquele que aprecia com gosto e conhecimento os prazeres culinários." A boa notícia é que todos podemos ser gastrônomos, mesmo não sabendo fazer ou podendo pagar por pratos finos. Os pratos mais simples são em geral os que dão mais prazer.
E juro ter escrito isso antes de ler o que diz a Larousse Gastronomique, bíblia do assunto, a respeito. "O verdadeiro gastrônomo, tendo em alta estima os produtos mais refinados da arte culinária, não os utiliza senão com moderação. Ele procura, no cotidiano, as preparações mais simples, mas as mais difíceis de realizar com perfeição."
Pode-se deduzir, então, que comer bem não é ir ao restaurante francês mais famoso da cidade e participar de uma bacanal culinária envolvendo atos obscenos com trufas brancas e foie-gras, tudo regado com vinho francês a mais de R$ 1 mil a garrafa. Isso se chama orgia e tem seu valor, mas gastronomia é outra coisa.
Gastronomia é concentrar toda atenção e todo amor na preparação de um ovo cozido, de um sanduíche ou de uma simples salada. É conhecer e saber respeitar os alimentos. Coisa rara em tempos de fast-food e gente criada em apartamentos. Nunca deixo de me surpreender com amigos que nem sabem o que são jabuticabas ou carambolas e nunca viram uma vaca com todos os pedaços ainda grudados uns nos outros. Exceto por oxigênio e água, comida é a coisa mais importante do mundo. Vale a pena gastar algum tempo conhecendo alimentos que você vai ingerir três vezes por dia por, em média, 60 anos.
Porque cada alimento tem uma personalidade própria e combina com outros alimentos específicos. Cada vegetal se comporta de uma maneira ao fogo. Cada carne pede um tipo de tempero. Ao mesmo tempo em que é essencial à vida - e por esse motivo mesmo - a comida é sagrada. Você matou animais e plantas para comê-los. O mínimo que pode fazer é prepará-los decentemente e sem desperdícios. A recompensa é o prazer indescritível de morder um sanduíche de, digamos, pão branco fresquinho sem casca, coalhada e pepino cortado na hora. Parece muito simples? Acredite, é delicioso.
Você pode ler quantos livros quiser sobre comida e vinhos, vai aprender um monte sobre a história dos alimentos e curiosidades diversas, mas nada substitui a pesquisa de campo. Provar de tudo, em várias versões e modos de preparar diferentes. Escolher livros de culinária é também uma arte. A grande maioria serve apenas para ficarem sendo bonitos em cima da mesa da sala, com todas aquelas fotos apetitosas e receitas mal-explicadas. A não ser que seja muito bem recomendado, jamais compre um livro de culinária sem ler algumas receitas. Ao final da coluna, listo alguns bons livros. Percebam a predominância da editora Cia das Letras. Adquirir conhecimento gastronômico é uma questão de paciência e pesquisa. Passear no mercado e tentar conhecer cada espécie de vegetal, procurar perceber a diferença no sabor a cada mês do ano e quando estão frescos ou não. Dá um trabalho danado, mas vale a pena. Depois de algum tempo, volte àquele restaurante francês famoso. Você vai perceber o quanto o foie-gras ficou diferente. E muito melhor.
Leia mais
"O Homem que Comeu de Tudo", de Jeffrey Steingarten (Cia. das Letras). Steingarten é crítico de gastronomia da revista "Vogue" norte-americana e conta neste livro, com muito bom humor, como descobriu a gastronomia.
"Food: a History", de Felipe Fernández-Armesto (MacMillan). É importado e em inglês, mas essencial para quem se interessa em conhecer melhor a cultura gastronômica e humana em geral.
"Cozinha Confidencial", de Anthony Bourdain (Cia. das Letras). O chef nova-iorquino narra episódios de sua juventude nas melhores e piores cozinhas da cidade. De quebra, conta vários segredos e técnicas.
"Em Busca do Prato Perfeito", de Anthony Bourdain (Cia. das Letras). Desta vez o chef Bourdain dá uma volta culinária pelo mundo e pelo caminho vai explicando o que é gastronomia.
"La Cucina", de Marcella Hazan (Cia. das Letras). A cozinheira italiana se viu casada e de frente para um fogão aos 20 anos, sem saber o que fazer com ele. Descobriu sozinha e mostra o que é ter sensibilidade culinária.
(Publicado originalmente na edição 24, de junho de 2004, do jornal Semana 3)
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