Monday, March 20, 2006

Bruno Ribeiro, fevereiro de 2005

O meu direito de morrer de câncer



As pessoas fazem mil e uma promessas quando um ano começa. Promessas que entram em prática – quando muito – depois do carnaval. Mesa de bar é lugar propício para o surgimento de promessas. “Vou parar de fumar”. “Não vou mais trair a minha mulher”. “Não voto mais em ninguém”. Mas só depois do carnaval. No meu caso, prometi que não faria mais promessas de balcão. Minto: a única coisa que prometi a mim mesmo é que não sentiria mais culpa nenhuma por fazer o que gosto.

Eu tinha decidido a parar de fumar. Mas, diante da chatice politicamente correta que tomou conta dos brasileiros, resolvi incomodar mais um pouco. Quanto mais a sociedade me perseguir, mais irei fumar em público. A publicidade nazi-fascista estampada nos maços não me comove: trata-se de uma estratégia que o sistema encontrou para botar a culpa em mim e não nas multinacionais que fabricam o cigarro. Se eu optar por morrer de câncer, o problema é meu. Aliás, já que a morte é inevitável, que a vida seja uma experiência prazerosa e intensa. Se cigarro me dá prazer, continuarei fumando. É uma decisão filosófica.

Resolvi escrever sobre sociedade e fumo depois de ser barrado em três bares. Bar com área para fumantes é o fim da picada. Você – não-fumante – pode até não gostar de cigarro; esta é uma opção tua e, de certa forma, uma opção sensata. Porém, há de convir que o bar é um território livre, anárquico e democrático, onde quem manda é o boêmio. Você tem prioridade no restaurante, no shopping, no cinema, no teatro, na sala de aula. E quer cortar meu barato quando vai tomar sua água com gás no butiquim?

Minha vizinha era um exemplo de retidão. Jovial, levantava às seis para correr na Lagoa do Taquaral. Não bebia, não fumava, não comia carne vermelha. Dormia antes das dez e não perdia a missa de domingo. Quando descobriu que estava com câncer, era tarde demais. No velório, os amigos, todos fumantes, lamentavam a ironia do destino.

Não quero com isso encorajar ninguém a fumar. Fumar é ruim. Mas também é bom. Quem fuma não tem fôlego pra nada. Mas também é uma pessoa mais interessante, mais divertida, mais tolerante. O fumante desafia a morte cotidianamente e este enfrentamento diário o torna mais sedutor. Se você fumar, poderá morrer antes do combinado. Mas pode ser que não. O avô de uma grande amiga, notório jornalista de Jundiaí, morreu na casa dos 90, tendo fumado três maços por dia desde os 10 anos de idade. E não morreu de câncer.

Na verdade, estamos ficando chatos demais. Implicantes até dizer chega. Nos meus devaneios, sonho com aqueles cafés enfumaçados onde Jean-Paul Sartre e Simone de Beavouir filosofavam envoltos em anéis azulados de fumo. O problema, ébrios leitores, é quando começamos a associar o cigarro com a falta de caráter. Soube que alguns jornais estão contratando apenas repórteres que não fumam, com o argumento de que dão menos despesas médicas e rendem mais para a empresa. Não é à toa que a imprensa nacional parou junto com os tabagistas inveterados, como Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Nelson Rodrigues, Millôr Fernandes.

Quando apontamos o tabagismo como um desvio moral, estamos, necessariamente, afirmando que a pessoa que não fuma é melhor, mais responsável e mais íntegra do que aquela que fuma. Esse era o discurso de Hitler, que nunca botou um cigarro na boca e apostava na criação de uma “raça pura”, formada por super-heróis, na aparência e na conduta. Eu, que não gosto de gente perfeitinha, reivindico o direito de continuar jogando no time de Albert Camus, Humphrey Bogart e Lauren Bacall. E sem me sentir culpado por isto.

(Publicado originalmente na edição 28, de fevereiro de 2005, da revista Semana 3)