Bruno Ribeiro, dezembro de 2004
O Robin Hood dos bares
Essa quem contou foi meu amigo Moacyr Luz, compositor e botequeiro dos bons, autor de sambas que adoro – como “Delírios da Baixa Gastronomia”, só para citar um exemplo. Pois bem. Era os anos de chumbo, ditadura lascada comendo solta. Mas o povo heróico – aquele do brado retumbante – não arredava o pé do botequim, mesmo depois do toque de recolher. Quando aparecia algum milico, era logo convencido a participar da beberagem, com a desculpa de celebrar alguma data cívica (naquela época sempre havia uma data cívica a ser comemorada).
O Bar da Maria, porém, também era freqüentado pela turma da esquerda, muitas vezes disfarçada de sambista para não entrar no pau-de-arara. Violões e cavaquinhos em punho, bastava avistar uma farda verde-oliva que se punha logo a cantar Dom e Ravel. A sorte é que tanto um lado quanto o outro era peixe pequeno. Recrutas sem muita ideologia e aspirantes a guerrilheiros que nunca haviam matado um passarinho.
E a madrugada se arrastava, democrática apenas no botequim, com fardados e barbudos dividindo a mesma mesa. É claro que a convivência não era sempre tranqüila. Às vezes uma das partes desconfiava do envolvimento de alguém num trabalho sujo e, invariavelmente, os jornais ganhavam um presunto fresco para as manchetes policiais do dia seguinte. Ou o bar perdia um freguês, obrigado a sumir do mapa.
O fato é que, certa noite, quando a bebedeira já havia atingido níveis alarmantes, apareceu um ladrão. Um ladrãozinho comum, com meia de mulher tapando o rosto e um revólver enferrujado, que ele apontava para todos os lados.
– Todo mundo para o banheiro que isto é um assalto! – gritou o clássico jargão.
E foi assim que acabaram todos metidos no minúsculo lavabo: guerrilheiros e soldados desarmados, prostitutas, músicos, bêbados comuns e até um cão vira-lata, que dormia na porta do banheiro quando irrompeu a remandiola.
E o ladrão ali, remexendo a caixa registradora, enfiando garrafa de uísque na sacola, fuçando a carteira do português que, à esta altura, estava mais branco do que o azulejo da parede.
– Ora, pois, aqui só tem pindura, ó gajo! – tentava argumentar o Portuga.
Mas o bandido no maior “nem te ouço”, metendo no saco até o galinho de Barcelos, que ficava pendurado no balcão, junto à flâmula do Vasco.
Nisso, ouviu-se uma voz vinda do banheiro:
– Ô, seu ladrão! Ô, seu ladrão!
E o seu ladrão, muito compenetrado com seu trabalho, deu de ombros.
– Ô, seu ladrão! – insistia a voz desconhecida.
– O que é, porra? Não vê que estou ocupado? – respondeu o gatuno, limpando o vidro do relógio do português, que já reluzia em seu pulso direito.
E a voz de bêbado, trêmula, mas decidida, pediu:
– A pindura, seu ladrão! Rasga a nossa pindura!
Antes de sair, o ladrão dirigiu-se até a parede onde estavam coladas, com fita crepe, as contas da clientela. E, num gesto de comovente solidariedade, rasgou todos os fiados em pedacinhos, bem na frente do português.
– Falou, mané! – disse, antes de sair correndo pela porta da frente.
De dentro do banheiro abafado, política à parte, ressoaram os aplausos da freguesia, em reconhecimento à nobre atitude do homem mascarado. O Robin Hood dos bares.
(Publicado originalmente na edição 27, de dezembro de 2004, da revista Semana 3)
Essa quem contou foi meu amigo Moacyr Luz, compositor e botequeiro dos bons, autor de sambas que adoro – como “Delírios da Baixa Gastronomia”, só para citar um exemplo. Pois bem. Era os anos de chumbo, ditadura lascada comendo solta. Mas o povo heróico – aquele do brado retumbante – não arredava o pé do botequim, mesmo depois do toque de recolher. Quando aparecia algum milico, era logo convencido a participar da beberagem, com a desculpa de celebrar alguma data cívica (naquela época sempre havia uma data cívica a ser comemorada).
O Bar da Maria, porém, também era freqüentado pela turma da esquerda, muitas vezes disfarçada de sambista para não entrar no pau-de-arara. Violões e cavaquinhos em punho, bastava avistar uma farda verde-oliva que se punha logo a cantar Dom e Ravel. A sorte é que tanto um lado quanto o outro era peixe pequeno. Recrutas sem muita ideologia e aspirantes a guerrilheiros que nunca haviam matado um passarinho.
E a madrugada se arrastava, democrática apenas no botequim, com fardados e barbudos dividindo a mesma mesa. É claro que a convivência não era sempre tranqüila. Às vezes uma das partes desconfiava do envolvimento de alguém num trabalho sujo e, invariavelmente, os jornais ganhavam um presunto fresco para as manchetes policiais do dia seguinte. Ou o bar perdia um freguês, obrigado a sumir do mapa.
O fato é que, certa noite, quando a bebedeira já havia atingido níveis alarmantes, apareceu um ladrão. Um ladrãozinho comum, com meia de mulher tapando o rosto e um revólver enferrujado, que ele apontava para todos os lados.
– Todo mundo para o banheiro que isto é um assalto! – gritou o clássico jargão.
E foi assim que acabaram todos metidos no minúsculo lavabo: guerrilheiros e soldados desarmados, prostitutas, músicos, bêbados comuns e até um cão vira-lata, que dormia na porta do banheiro quando irrompeu a remandiola.
E o ladrão ali, remexendo a caixa registradora, enfiando garrafa de uísque na sacola, fuçando a carteira do português que, à esta altura, estava mais branco do que o azulejo da parede.
– Ora, pois, aqui só tem pindura, ó gajo! – tentava argumentar o Portuga.
Mas o bandido no maior “nem te ouço”, metendo no saco até o galinho de Barcelos, que ficava pendurado no balcão, junto à flâmula do Vasco.
Nisso, ouviu-se uma voz vinda do banheiro:
– Ô, seu ladrão! Ô, seu ladrão!
E o seu ladrão, muito compenetrado com seu trabalho, deu de ombros.
– Ô, seu ladrão! – insistia a voz desconhecida.
– O que é, porra? Não vê que estou ocupado? – respondeu o gatuno, limpando o vidro do relógio do português, que já reluzia em seu pulso direito.
E a voz de bêbado, trêmula, mas decidida, pediu:
– A pindura, seu ladrão! Rasga a nossa pindura!
Antes de sair, o ladrão dirigiu-se até a parede onde estavam coladas, com fita crepe, as contas da clientela. E, num gesto de comovente solidariedade, rasgou todos os fiados em pedacinhos, bem na frente do português.
– Falou, mané! – disse, antes de sair correndo pela porta da frente.
De dentro do banheiro abafado, política à parte, ressoaram os aplausos da freguesia, em reconhecimento à nobre atitude do homem mascarado. O Robin Hood dos bares.
(Publicado originalmente na edição 27, de dezembro de 2004, da revista Semana 3)
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