Bruno Ribeiro, outubro de 2005
Lágrimas de crocodilo
“A juventude não foi feita para o prazer, mas para o heroísmo.” (Paul Claudel)
Ela me olhou bem dentro dos olhos e disse: você nunca chora. Eu tentei argumentar dizendo que ela se enganara, mas não fui convincente. Acabara de enterrar meu pai e, embora triste, não consegui chorar. Ela comentou como quem cobra uma lágrima. Lembrei-me de “O Estrangeiro”, quando Mersault não chora no enterro da mãe e passa a ser o principal suspeito do crime por este motivo. A mulher chorando sobre o caixão não me comoveu. Ao contrário, me deu certo nojo sua hipocrisia. Sem vocação para carpideira, fui ao primeiro bar e bebi o morto. Fosse eu o defunto, quereria um velório com bebidas e música. Não esse ritual sem compaixão por quem não acredita em deus e é obrigado a levar um terço enroscado nos dedos.
Eu choro sim, insisti. Mas ela entrou no táxi e deixou-me só, sem saber que, dias antes, eu chorara com “Cinema Paradiso”, na cena dos beijos censurados. Ela não sabe ainda que choro ouvindo música. “Happiness is a Warm Gun”, do álbum branco dos Beatles; “A Cavalleria Rusticana”, de Mascagni; “Movimento dos Barcos”, do Macalé. Se ouvir, desabo. E não é o efeito do uísque que acompanha a audição. Choro, mesmo sóbrio.
Quando veio a notícia que Lucas Vezzaro, um menino de 14 anos, morador de Erechim, morreu afogado tentando salvar seus colegas de escola, estávamos diante da tevê. Eu chorei. Ela, ao contrário, foi lavar a louça do almoço, como se isto fosse mais sensato do que chorar naquela hora. E, por não ter chorado no enterro de meu pai, causei-lhe este mal-estar.
Na posse do Lula, chorei; mas ela não viu porque não estava em Brasília. Ficou por aqui, dando voltas na Lagoa do Taquaral para perder a barriguinha; eu fui até lá e chorei quando a Esquadrilha da Fumaça riscou o céu, anunciando algo grandioso que deveria ter acontecido no País. Depois choraria de decepção, quando jogaram os sonhos no lixo; eles também não queriam mudar o homem, mas adaptá-lo. De que valem as lágrimas, se até Roberto Jefferson chora? Se até Zé Dirceu? E ela, ao invés de chorar, riu, cínica e sádica. Logo ela, que nunca se importara com o Brasil, ela que não gostava de política. Não é curioso que os alienados sempre tomam partido quando convém?
No capítulo final de “Os Meninos da Rua Paulo”, quando Nemecsek morre em combate sem trair os companheiros, choro diante da pureza. Ela não me vê chorar porque estou com o rosto mergulhado nas páginas, o pranto diluindo-se nas ilustrações que me jogam a infância na cara. E com que cara ela me diz que não choro? Perguntei-lhe certa vez se ela nunca se emocionava lendo um livro. E ela disse que só se comovia com coisas reais.
Talvez por isso tenha chorado quando lhe riscaram a porta do carro, quando perdeu o broche herdado da bisavó ou quando soube que a cadelinha Laika morreu na solidão do espaço, tão longe da Terra. Por quê não choraria no velório do velho, ocasião propícia para revelar seu coração caridoso e cristão? Não fui capaz de fingir uma dor que não sentia. Desejar que o pai se livrasse das dores do mundo não é egoísmo, mas compreensão do vazio existencial que lhe consumia a alma.
É engraçado como se pode ser triste e feliz ao mesmo tempo. Tentei lhe explicar que felicidade e alegria não são a mesma coisa, mas não adiantou. Ela fez as malas e foi atrás do trio elétrico. E como só não vai quem já morreu, trato de preparar meu gurufim. Nada de flores e velas, por favor. Ao redor do meu corpo haverá somente a pátria imensa. A pátria honesta de gente como o menino Lucas, que deu a vida pelos amigos.
Esta pátria sobrevive, apesar destas lágrimas de crocodilo.
(Publicado originalmente na edição 34, de outubro de 2005, da revista Semana 3)
“A juventude não foi feita para o prazer, mas para o heroísmo.” (Paul Claudel)
Ela me olhou bem dentro dos olhos e disse: você nunca chora. Eu tentei argumentar dizendo que ela se enganara, mas não fui convincente. Acabara de enterrar meu pai e, embora triste, não consegui chorar. Ela comentou como quem cobra uma lágrima. Lembrei-me de “O Estrangeiro”, quando Mersault não chora no enterro da mãe e passa a ser o principal suspeito do crime por este motivo. A mulher chorando sobre o caixão não me comoveu. Ao contrário, me deu certo nojo sua hipocrisia. Sem vocação para carpideira, fui ao primeiro bar e bebi o morto. Fosse eu o defunto, quereria um velório com bebidas e música. Não esse ritual sem compaixão por quem não acredita em deus e é obrigado a levar um terço enroscado nos dedos.
Eu choro sim, insisti. Mas ela entrou no táxi e deixou-me só, sem saber que, dias antes, eu chorara com “Cinema Paradiso”, na cena dos beijos censurados. Ela não sabe ainda que choro ouvindo música. “Happiness is a Warm Gun”, do álbum branco dos Beatles; “A Cavalleria Rusticana”, de Mascagni; “Movimento dos Barcos”, do Macalé. Se ouvir, desabo. E não é o efeito do uísque que acompanha a audição. Choro, mesmo sóbrio.
Quando veio a notícia que Lucas Vezzaro, um menino de 14 anos, morador de Erechim, morreu afogado tentando salvar seus colegas de escola, estávamos diante da tevê. Eu chorei. Ela, ao contrário, foi lavar a louça do almoço, como se isto fosse mais sensato do que chorar naquela hora. E, por não ter chorado no enterro de meu pai, causei-lhe este mal-estar.
Na posse do Lula, chorei; mas ela não viu porque não estava em Brasília. Ficou por aqui, dando voltas na Lagoa do Taquaral para perder a barriguinha; eu fui até lá e chorei quando a Esquadrilha da Fumaça riscou o céu, anunciando algo grandioso que deveria ter acontecido no País. Depois choraria de decepção, quando jogaram os sonhos no lixo; eles também não queriam mudar o homem, mas adaptá-lo. De que valem as lágrimas, se até Roberto Jefferson chora? Se até Zé Dirceu? E ela, ao invés de chorar, riu, cínica e sádica. Logo ela, que nunca se importara com o Brasil, ela que não gostava de política. Não é curioso que os alienados sempre tomam partido quando convém?
No capítulo final de “Os Meninos da Rua Paulo”, quando Nemecsek morre em combate sem trair os companheiros, choro diante da pureza. Ela não me vê chorar porque estou com o rosto mergulhado nas páginas, o pranto diluindo-se nas ilustrações que me jogam a infância na cara. E com que cara ela me diz que não choro? Perguntei-lhe certa vez se ela nunca se emocionava lendo um livro. E ela disse que só se comovia com coisas reais.
Talvez por isso tenha chorado quando lhe riscaram a porta do carro, quando perdeu o broche herdado da bisavó ou quando soube que a cadelinha Laika morreu na solidão do espaço, tão longe da Terra. Por quê não choraria no velório do velho, ocasião propícia para revelar seu coração caridoso e cristão? Não fui capaz de fingir uma dor que não sentia. Desejar que o pai se livrasse das dores do mundo não é egoísmo, mas compreensão do vazio existencial que lhe consumia a alma.
É engraçado como se pode ser triste e feliz ao mesmo tempo. Tentei lhe explicar que felicidade e alegria não são a mesma coisa, mas não adiantou. Ela fez as malas e foi atrás do trio elétrico. E como só não vai quem já morreu, trato de preparar meu gurufim. Nada de flores e velas, por favor. Ao redor do meu corpo haverá somente a pátria imensa. A pátria honesta de gente como o menino Lucas, que deu a vida pelos amigos.
Esta pátria sobrevive, apesar destas lágrimas de crocodilo.
(Publicado originalmente na edição 34, de outubro de 2005, da revista Semana 3)
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