Monday, March 20, 2006

Bruno Ribeiro, novembro de 2005

Uma bicicleta vermelha



Se eu disser que tive um encontro amoroso com a Jennifer Lopez ou que fui indicado para o Nobel de Literatura, todo mundo acredita. Mas quando digo que não tenho celular e não sei dirigir, acham que estou tirando onda. É comum, no trabalho, que um entrevistado peça o número do meu celular. Quando respondo que não tenho, as pessoas acham que estou mentindo. Como assim, um jornalista sem celular? Impossível. Indignadas, me perguntam como é possível que eu leve uma vida normal sem celular. E se o carro quebrar, de madrugada, numa estrada deserta, como é que faz? Aí vem o melhor: digo que também não tenho carro e sequer dirijo. As pessoas fazem cara de espanto, outras de pena. De duas uma: sou pobre ou débil mental. Não ter um carro e um celular jamais pode ser uma opção racional. Tem de ter uma razão de fundo psicológico, algo que Freud explique.

É engraçada a lógica cartesiana. Sendo homem e jovem, devo, naturalmente, gostar de carros, velocidade e de um celular que não pare de tocar em público, denotando a minha popularidade. A tecnologia, nestes casos, é demonstrativa de poder. Em longo artigo, publicado em meu blog, explico as razões pelas quais não quis ter carro. Dentre elas a certeza de que vivo melhor sem essa obrigação. Não sei quanto custa um litro de gasolina, nem tenho de disputar uma vaga quando quero beber por aí. Chego de táxi e ainda posso encher a cara, porque não causarei nenhum acidente por estar embriagado. No final do mês, gasto menos com táxi do que qualquer motorista gasta com a manutenção do veículo. E livre também da conta do celular, posso investir esse dinheiro em coisas mais produtivas, como livros, discos, vinhos e viagens, por exemplo.

A grande dúvida, que parece tirar o sono das pessoas, é sempre uma: como faço para não me preocupar com o fato de não ter carro e celular? Diante desta grande questão filosófica, todas as outras perdem o sentido. Consigo chegar aos compromissos na hora marcada? Consigo “catar” mulher? Consigo realmente ser feliz? Sim, eu consigo, eu consigo! Mas minha palavra não basta. Não é possível que exista tal desprendimento. Malu Mader recusou um milhão de reais para posar nua. E há quem diga que se a oferta fosse para dois milhões, ela topava. Topava coisa nenhuma. Entre um milhão e dois não há muita diferença, você se torna milionário de qualquer maneira. Ela não tirou a roupa porque não quis, simples assim. Moralismo ou não, o fato é que prevaleceu a opinião dela, contrariando a lógica econômica. Esse mundo da competição se nega a aceitar que existam pessoas de princípios, capazes de recusar montanhas de dinheiro em nome de uma reputação.

A embromação toda foi para chegar aqui: não adianta buscar cabelo em ovo. Quem acredita piamente que dinheiro pode comprar a tudo e a todos; quem tem certeza de que os homens são capazes de qualquer trapaça para chegar ao poder; quem acha que o “ter” sempre prevalecerá ao “ser” neste mundo, está redondamente enganado. Isto talvez responda a dúvida de um leitor, que me escreveu perguntando o que eu faria se ganhasse uma Ferrari, daquelas vermelhinhas. Ele desafia: “aposto e ganho que você ficaria com ela”. Sem dúvida! Mas eu a venderia e voltaria a andar de táxi, como sempre fiz. Com o dinheiro do carro eu conheceria países distantes, como um ex-professor. Estressado com o trânsito de São Paulo, abandonou tudo e se mandou para o Vietnã. Poderia ser qualquer outro lugar, mas este foi o primeiro país que ele viu no mapa. Encontrou a mulher de sua vida, virou escritor e hoje anda pelo vilarejo em sua bicicleta vermelha, como se pilotasse uma Ferrari.

(Publicado originalmente na edição 35, de novembro de 2005, da revista Semana 3)

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