Monday, March 20, 2006

Bruno Ribeiro, junho de 2005

Carta póstuma para Helenira



Querida Helenira,
Esta carta chegará com 33 anos de atraso. Mas escrevo para lhe agradecer o gesto tão nobre de ter tentado. Dizem que não se deve tentar, porque o mun¬do é assim mesmo. Mas é um erro achar que o mundo não muda. Se o primeiro negro norte-americano não tivesse se recusado a ceder o lugar para um branco, no ônibus, talvez o apartheid persistisse até hoje, nos Estados Unidos. A história registra inúmeros casos de sacrifícios individuais que geraram mudanças no plano coletivo.

Quando balas da ditadura vararam teu coração de mulata, estavas na flor da idade. Na poética definição de um camponês que lhe conheceu na luta, eras “a flor da subversão na boniteza”. Deixastes de ser uma estudante paulista para virar heroína nacional na selva do Araguaia. Os anos passaram, o mato cresceu e a tornou parte do solo brasileiro – este solo que um dia há de ser nosso.

Quando vice-presidente da UNE, pedistes para que a juventude nunca deixasse de acreditar. Que o sonho não deveria ser inatingível pelo simples fato de ser sonho. Ora, o avião também não era um sonho antes de ser inventado? E quem diria ser possível, antes que o primeiro riscasse o céu? Por isso, quando o comandante da guerrilha lhe perguntou o que gostaria de fazer quando viesse o triunfo, respondestes sem titubear: “Quero ser crítica de arte”. Uma menina carregando um fuzil e sonhando ser crítica de arte.

Há de chegar o dia, Helenira; a paciência é virtude revolucionária. Por isso alguns homens preferem não exaurir a vida e optam por trilhar o caminho da solidariedade desinteressada e da justiça. Os exemplos são incontáveis e podemos começar com Jesus Cristo, se quisermos ter um ponto de partida. Não é sintomático que todos tenham sempre o mesmo fim?

Devemos sentir orgulho. Pior seria ter ficado ao lado dos que venceram nessas batalhas. É tão certa a nossa convicção como é verde e amarela a bandeira, como é vasto o mar, como é fértil a terra. Para os arrivistas, nosso otimismo é imperdoável. Mas há motivos para crer no futuro: armas não matam idéias; e enquanto “eles” nos dão por mortos, começamos tudo de novo, como formigas reconstruindo o formigueiro após cada temporal.

Independente de qualquer ideologia, que admirável gesto dedicar a própria vida em nome de milhões de brasileiros que sequer sabiam de sua existência! Homens analfabetos, famintos, embrutecidos pelo desemprego e pelo trabalho escravo. Assim como no poema, tinhas apenas duas mãos e o sentimento do mundo.

Nos livros de escola, teu nome não aparece. Os capítulos importantes são reservados aos generais, como Duque de Caxias – o que ordenou o massacre de velhos e crianças na Guerra do Paraguai – ou a heróis consentidos, como Princesa Isabel, que assinou a Lei Áurea para evitar a revolução negra. O presente pode ser injusto, mas o futuro está do nosso lado. Não importa que tenhas caído. Certas derrotas deixam o legado de perseverança e mantêm vivas as grandes mensagens. O resto, Helenira, é a barbárie.

Ontem, visitando um amigo na Vila Esperança, me deparei com teu nome numa placa de rua – Helenira Rezende de Souza Nazareth. Ao menos ali, naquela ruazinha de terra, em Campinas, habitada por gente sofrida e trabalhadora, alguém soube de ti. Na Vila Esperança – e que nome mais sugestivo para um bairro pobre – Dona Marcolina, de 68 anos, rega diariamente a roseira que plantou ao pé da placa que leva teu nome. A flor da subversão na boniteza.

(Publicado originalmente na edição 31, de junho de 2005, da revista Semana 3)

2 Comments:

Anonymous Anonymous said...

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Anonymous Anonymous said...

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