Bruno Ribeiro, julho de 2005
O último gol do futebol brasileiro
O gol de Falcão contra a Itália, na Copa do Mundo de 1982, é a recordação mais nítida de minha infância. Morávamos numa casa simples de subúrbio, entre a favela e o bairro nobre. Mas era no terreno baldio que eu passava a maior parte do dia, jogando bola e pensando ser o Sócrates. Todo mundo queria ser o Zico, mas eu preferia o Sócrates.
Naquela época os bairros tinham mais terrenos baldios e mais crianças na rua. Talvez por isso o futebol brasileiro fora melhor. A derrota do Brasil na Copa de 82 marcou o fim do futebol romântico e o início dos tempos de profissionalismo do futebol-empresa. Tenho aguardado o dia em que, como nos primórdios do esporte, os atletas voltem a entrar em campo vestindo gravatas.
Divido o futebol entre antes e depois do gol de Falcão, no jogo que perdemos por 3 a 2. A ousadia daquela geração acabou sendo culpada pelo fracasso e o que se impôs ao mundo a partir de então foi o futebol de resultados, burocrático e defensivo. O gol de Falcão é um símbolo. Não só do futebol que se foi, mas também de um projeto de nação que não vingou.
Assim como nos convenceram de que o socialismo morreu com a queda do Muro de Berlim, nos fizeram crer que o futebol-arte expirou com a derrota brasileira na Copa de 82. Se o Brasil, país do futebol, não ganhava uma Copa desde 1970, é porque a indisciplina, decididamente, ficara fora de moda. Não havia mais espaço para o lúdico, a malandragem, o lampejo de genialidade que tanto nos diferenciava do resto do mundo. Derrotada, a Seleção Brasileira arrastou consigo a alegria do esporte.
Disseram que não podíamos mais insistir naquela maneira obsoleta de jogar. Ou o futebol brasileiro se adaptava aos novos tempos, ou os novos tempos sepultariam, para sempre, o futebol brasileiro. A Europa, com a inovação dos líberos, venceu a guerra contra o drible. As grandes academias de ginástica substituíram os terrenos baldios. E os jogadores foram tornando-se cada vez mais brancos. Mesmo os negros.
No dia do jogo contra a Itália, a rua estava decorada com bandeirinhas verde-amarelas, o céu colorido de balões e havia um cheiro de pólvora no ar, que jamais pude esquecer. Nunca, como naquele jogo, senti tão perto o clima de uma revolução. Era como se a mestiçagem brasileira que a Seleção encarnava estivesse entrando num campo de guerra, para lutar pela independência da Pátria.
Aquele time era a síntese da raça brasileira, com todas as suas cores e sotaques. E os craques eram como nós, legítimos representantes do povo, heróis de um país eufórico pela abertura política que se anunciava nos horizontes de Brasília. Aqueles homens não jogavam apenas pelo dinheiro, mas pelo desejo de liberdade que cada brasileiro já não podia conter.
A fotografia de Falcão no momento do gol mantém o calor do acontecimento: os braços abertos de Cristo, as veias saltadas, o rosto desfigurado pela emoção, o suor à flor da pele, a cabeleira loura esvoaçando na corrida em direção ao nada, o grito humano ecoando no estádio. A imagem é maior que o próprio Falcão e torna-se um ícone, separado de seu criador. Devíamos trazer esta imagem estampada nas camisetas, como um Che Guevara do futebol rebelde.
O silêncio que pairou sobre o meu bairro após o terceiro gol italiano veio carregado de angústia. Meu tio, que se gabava de nunca ter chorado na vida, desabou no sofá e chorou copiosamente, feito criança. Talvez, mais do que eu, ele sabia que o gol de Falcão tinha sido o último gol do futebol brasileiro.
(Publicado originalmente na edição 32, de julho de 2005, da revista Semana 3)
O gol de Falcão contra a Itália, na Copa do Mundo de 1982, é a recordação mais nítida de minha infância. Morávamos numa casa simples de subúrbio, entre a favela e o bairro nobre. Mas era no terreno baldio que eu passava a maior parte do dia, jogando bola e pensando ser o Sócrates. Todo mundo queria ser o Zico, mas eu preferia o Sócrates.
Naquela época os bairros tinham mais terrenos baldios e mais crianças na rua. Talvez por isso o futebol brasileiro fora melhor. A derrota do Brasil na Copa de 82 marcou o fim do futebol romântico e o início dos tempos de profissionalismo do futebol-empresa. Tenho aguardado o dia em que, como nos primórdios do esporte, os atletas voltem a entrar em campo vestindo gravatas.
Divido o futebol entre antes e depois do gol de Falcão, no jogo que perdemos por 3 a 2. A ousadia daquela geração acabou sendo culpada pelo fracasso e o que se impôs ao mundo a partir de então foi o futebol de resultados, burocrático e defensivo. O gol de Falcão é um símbolo. Não só do futebol que se foi, mas também de um projeto de nação que não vingou.
Assim como nos convenceram de que o socialismo morreu com a queda do Muro de Berlim, nos fizeram crer que o futebol-arte expirou com a derrota brasileira na Copa de 82. Se o Brasil, país do futebol, não ganhava uma Copa desde 1970, é porque a indisciplina, decididamente, ficara fora de moda. Não havia mais espaço para o lúdico, a malandragem, o lampejo de genialidade que tanto nos diferenciava do resto do mundo. Derrotada, a Seleção Brasileira arrastou consigo a alegria do esporte.
Disseram que não podíamos mais insistir naquela maneira obsoleta de jogar. Ou o futebol brasileiro se adaptava aos novos tempos, ou os novos tempos sepultariam, para sempre, o futebol brasileiro. A Europa, com a inovação dos líberos, venceu a guerra contra o drible. As grandes academias de ginástica substituíram os terrenos baldios. E os jogadores foram tornando-se cada vez mais brancos. Mesmo os negros.
No dia do jogo contra a Itália, a rua estava decorada com bandeirinhas verde-amarelas, o céu colorido de balões e havia um cheiro de pólvora no ar, que jamais pude esquecer. Nunca, como naquele jogo, senti tão perto o clima de uma revolução. Era como se a mestiçagem brasileira que a Seleção encarnava estivesse entrando num campo de guerra, para lutar pela independência da Pátria.
Aquele time era a síntese da raça brasileira, com todas as suas cores e sotaques. E os craques eram como nós, legítimos representantes do povo, heróis de um país eufórico pela abertura política que se anunciava nos horizontes de Brasília. Aqueles homens não jogavam apenas pelo dinheiro, mas pelo desejo de liberdade que cada brasileiro já não podia conter.
A fotografia de Falcão no momento do gol mantém o calor do acontecimento: os braços abertos de Cristo, as veias saltadas, o rosto desfigurado pela emoção, o suor à flor da pele, a cabeleira loura esvoaçando na corrida em direção ao nada, o grito humano ecoando no estádio. A imagem é maior que o próprio Falcão e torna-se um ícone, separado de seu criador. Devíamos trazer esta imagem estampada nas camisetas, como um Che Guevara do futebol rebelde.
O silêncio que pairou sobre o meu bairro após o terceiro gol italiano veio carregado de angústia. Meu tio, que se gabava de nunca ter chorado na vida, desabou no sofá e chorou copiosamente, feito criança. Talvez, mais do que eu, ele sabia que o gol de Falcão tinha sido o último gol do futebol brasileiro.
(Publicado originalmente na edição 32, de julho de 2005, da revista Semana 3)
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