Bruno Ribeiro, ago/set de 2005
Os gatos, os pássaros e a liberdade
Dias atrás o meu gato apareceu em casa com um pardal entre os dentes. Não foi a primeira e, com certeza, não será a última vez que ele conseguirá tal proeza. A nenhum outro ser vivo sobre a Terra a natureza concede o direito de arrebatar um pássaro em pleno vôo. Se nós, os seres racionais, quisermos abater um desses pequenos animaizinhos, precisaremos recorrer a recursos não muito dignos, como a pedra de atiradeira ou o chumbinho das espingardas de pressão.
Os gatos, ao contrário, são capazes de desafiar as leis da física num único salto; precisos e elegantes, transcrevem no espaço vazio, num piscar de olhos, o trajeto de uma flecha certeira – do alto do muro para o pássaro. E com que fidalguia retornam ao chão! A queda de uma pluma não seria mais delicada.
Não raro os gatos costumam exibir-se aos donos. Ficam à distância, com a caça a se debater dentro da boca, olhando-nos com certo desdém, entre vaidosos e indiferentes, como convém a todos os seres que são livres. No fundo, estão a zombar de nossa incapacidade atlética. Se pudessem, de certo diriam:
– Vocês são tão ridículos! Capazes de criar a bomba atômica, mas não conseguem apanhar um pássaro em pleno vôo!
Da beleza à agilidade, os gatos possuem quase todas as virtudes que faltam aos outros animais. A única dor do gato é não poder voar. O ódio mortal que sentem pelos pássaros vem, possivelmente, deste único detalhe. Ambos são os seres mais livres do planeta: aos gatos tudo basta porque nada importa, e este falso domesticável – porque ninguém pode aprisionar a vontade do gato –, nos paga o afago e a comida com sua soturna e discreta beleza, esparramada pelo sofá da sala como parte da decoração.
Já os pássaros, nem é preciso dizer, atingiram o estágio de liberdade mais elevado que existe: a capacidade do vôo. Voar é um dos maiores sonhos do homem, desde os seus primórdios. Mas este é, sobretudo, o sonho dos gatos. Durante as madrugadas, ficam nos telhados, mirando a imensidão celeste, como se num passado distante houvessem sido íntimos das estrelas. Pudessem voar e nossas insônias seriam bem mais suportáveis; as noites de vigília, à janela, estariam preenchidas com a mais nobre celebração da liberdade: o espetáculo do vôo! De repente: “Olha ali, lá se vão os gatos da vizinha copulando em pleno ar!”
É claro que fico penalizado com os pardais que têm a infelicidade de cair nas garras do meu gato. Quando chego a tempo de salvá-los da dentada final, quase sempre o faço. Mas posso compreender a luta de classes silenciosa que se desenrola desde que gatos e pássaros se viram pela primeira vez. Trata-se de um eterno conflito de libertários: o gato é mais um intelectual da liberdade, por sua postura contemplativa e movimentos matemáticos; o pássaro, ao contrário, é um artista revolucionário, que risca o céu com a tinta da própria natureza, sem a graciosidade e a inteligência felina, mas também sem a sua arrogância. Ao contrário do gato, o pássaro não precisa desejar mais nada.
Depois de comer todo o pardal, o gato veio se aconchegar aos meus pés. Orgulhoso de seu crime, lambeu os beiços e espalhou os músculos ao sol, ronronando de satisfação. Prisioneiro que sou da ordem natural das coisas, cocei-lhe o queixo, resignado. E pude notar em seus olhos amarelos, dois pássaros ariscos buscando o céu infinito.
PS: Aproveito para lembrar que já se foram quatro anos do assassinato de um homem que fez da liberdade sua bandeira. Eu não me esqueço e insisto na pergunta: quem matou Toninho?
(Publicado originalmente na edição 33, de ago/set de 2005, da revista Semana 3)
Dias atrás o meu gato apareceu em casa com um pardal entre os dentes. Não foi a primeira e, com certeza, não será a última vez que ele conseguirá tal proeza. A nenhum outro ser vivo sobre a Terra a natureza concede o direito de arrebatar um pássaro em pleno vôo. Se nós, os seres racionais, quisermos abater um desses pequenos animaizinhos, precisaremos recorrer a recursos não muito dignos, como a pedra de atiradeira ou o chumbinho das espingardas de pressão.
Os gatos, ao contrário, são capazes de desafiar as leis da física num único salto; precisos e elegantes, transcrevem no espaço vazio, num piscar de olhos, o trajeto de uma flecha certeira – do alto do muro para o pássaro. E com que fidalguia retornam ao chão! A queda de uma pluma não seria mais delicada.
Não raro os gatos costumam exibir-se aos donos. Ficam à distância, com a caça a se debater dentro da boca, olhando-nos com certo desdém, entre vaidosos e indiferentes, como convém a todos os seres que são livres. No fundo, estão a zombar de nossa incapacidade atlética. Se pudessem, de certo diriam:
– Vocês são tão ridículos! Capazes de criar a bomba atômica, mas não conseguem apanhar um pássaro em pleno vôo!
Da beleza à agilidade, os gatos possuem quase todas as virtudes que faltam aos outros animais. A única dor do gato é não poder voar. O ódio mortal que sentem pelos pássaros vem, possivelmente, deste único detalhe. Ambos são os seres mais livres do planeta: aos gatos tudo basta porque nada importa, e este falso domesticável – porque ninguém pode aprisionar a vontade do gato –, nos paga o afago e a comida com sua soturna e discreta beleza, esparramada pelo sofá da sala como parte da decoração.
Já os pássaros, nem é preciso dizer, atingiram o estágio de liberdade mais elevado que existe: a capacidade do vôo. Voar é um dos maiores sonhos do homem, desde os seus primórdios. Mas este é, sobretudo, o sonho dos gatos. Durante as madrugadas, ficam nos telhados, mirando a imensidão celeste, como se num passado distante houvessem sido íntimos das estrelas. Pudessem voar e nossas insônias seriam bem mais suportáveis; as noites de vigília, à janela, estariam preenchidas com a mais nobre celebração da liberdade: o espetáculo do vôo! De repente: “Olha ali, lá se vão os gatos da vizinha copulando em pleno ar!”
É claro que fico penalizado com os pardais que têm a infelicidade de cair nas garras do meu gato. Quando chego a tempo de salvá-los da dentada final, quase sempre o faço. Mas posso compreender a luta de classes silenciosa que se desenrola desde que gatos e pássaros se viram pela primeira vez. Trata-se de um eterno conflito de libertários: o gato é mais um intelectual da liberdade, por sua postura contemplativa e movimentos matemáticos; o pássaro, ao contrário, é um artista revolucionário, que risca o céu com a tinta da própria natureza, sem a graciosidade e a inteligência felina, mas também sem a sua arrogância. Ao contrário do gato, o pássaro não precisa desejar mais nada.
Depois de comer todo o pardal, o gato veio se aconchegar aos meus pés. Orgulhoso de seu crime, lambeu os beiços e espalhou os músculos ao sol, ronronando de satisfação. Prisioneiro que sou da ordem natural das coisas, cocei-lhe o queixo, resignado. E pude notar em seus olhos amarelos, dois pássaros ariscos buscando o céu infinito.
PS: Aproveito para lembrar que já se foram quatro anos do assassinato de um homem que fez da liberdade sua bandeira. Eu não me esqueço e insisto na pergunta: quem matou Toninho?
(Publicado originalmente na edição 33, de ago/set de 2005, da revista Semana 3)
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