Marcelo Träsel, dezembro de 2004
A técnica do comer
Comer não é só encher a boca com algum alimento, mastigar, engolir e em alguns casos soltar um arroto depois. Nem mesmo se você fizer cara de erudito percebendo a origem grega do azeite utilizado para fritar as cebolas enquanto isso.
Para desfrutar completamente da comida é necessário uma técnica, no sentido grego. Para o povo de Homero, tekhné designava qualquer atividade humana passível de desenvolvimento. Desde produzir cestas de vime até fazer amor. De guerrear a filosofar. E era algo que se aprendia fazendo, com um mestre. Treinando. Aperfeiçoando-se, enfim – mas nunca chegando à perfeição porque, como algo próprio do humano, a técnica nunca pode ser perfeita.
Mas tergiverso. O ponto aqui é que existe também uma técnica do comer. Pode-se aprendê-la em escolas especializadas, o que é bastante recomendável. Como é de se imaginar que a maioria dos leitores não pretenda fazê-lo, relato aqui algumas noções que descobri como autodidata diletante.
Deixando-se de lado a questão social do uso dos talheres, é preciso aprender a preparar os sentidos. O primeiro passo para isso é conhecer os alimentos e sua história. Como você pretende descobrir o sabor de jabuticaba na calda do sorvete de creme, digamos, se nunca provou uma jabuticaba? Por isso é importante provar alimentos frescos, individualmente. Assim é possível conhecer seu gosto característico.
Quanto à história do alimento, serve para saber em que época do ano pedir um prato com mariscos sem risco de intoxicação e também para impressionar as gurias com seu discurso a respeito daquele tipo de chicória que cresce apenas em uma ilha perto de Veneza – não esqueça de fazer a cara de erudito.
Depois de estudar o sabor dos alimentos, você está pronto para testar seus conhecimentos na prática. Lembre-se de que se saboreia a comida primeiro com os olhos, depois com o nariz e finalmente com a língua. Todo aquele frufru dos restaurantes chiques na montagem do prato não é só frescura. Experimente colocar um ramo de salsa no arroz branco. Fica muito mais apetitoso, não?
O mesmo em relação ao olfato. Um defeito necessário dos restaurantes é não se poder sentir o cheiro da comida sendo preparada – ao menos nas boas casas do ramo. Nada abre mais o apetite do que o odor vindo da cozinha.
Note que saboreamos a comida não na língua, mas no cérebro. As papilas gustativas simplesmente transmitem impulsos elétricos ao sistema nervoso central, onde são interpretados. Mas neste processo interfere o estado psicológico. Uma pessoa deprimida vai achar até foie-gras algo insosso.
O cheiro e a visão da comida predispõem a apreciá-la melhor, assim como o ambiente do local. Música de teclado eletrônico ao vivo ou luz demais são gastronomicamente broxantes. Estar entre amigos em um ambiente pelo qual se guarda algum afeto, por outro lado, faz a comida ter um sabor muito melhor. Por isso a comidinha da mamãe é muito melhor que a de qualquer restaurante. A lição que fica é, quando possível, cozinhar em casa.
Outra boa dica é evitar café, cigarros ou bebidas fortes antes de uma refeição que prometa ser deliciosa. Estas substâncias amortecem as papilas gustativas e prejudicam o olfato. Talvez até a visão, dependendo de quanto uísque a pessoa beber. Durante a refeição, beba água, cerveja ou vinho. Se pedir uma Coca Diet, você se arrisca a ser assassinado pelo chef com uma bela faca de aço Solingen. Bebidas doces como refrigerantes e sucos mascaram o sabor.
Evite misturar tudo no prato em uma gororoba. Ao menos prove cada preparação em separado primeiro. Ao colocar os pedaços na boca, deixe que descansem um segundo sobre todos os pontos da língua antes de começar a mastigar. Depois de engolir, preste atenção nos sabores mais sutis que surgem com a ação da saliva sobre as substâncias químicas – cada uma tem um tempo de permanência até se desintegrar.
O importante mesmo é treinar e treinar, comer e comer, sempre curioso e aberto às novas experiências como as crianças. E sempre com a mesma seriedade com que as crianças brincam.
(Publicado originalmente na edição 27, de dezembro de 2004, da revista Semana 3)
Comer não é só encher a boca com algum alimento, mastigar, engolir e em alguns casos soltar um arroto depois. Nem mesmo se você fizer cara de erudito percebendo a origem grega do azeite utilizado para fritar as cebolas enquanto isso.
Para desfrutar completamente da comida é necessário uma técnica, no sentido grego. Para o povo de Homero, tekhné designava qualquer atividade humana passível de desenvolvimento. Desde produzir cestas de vime até fazer amor. De guerrear a filosofar. E era algo que se aprendia fazendo, com um mestre. Treinando. Aperfeiçoando-se, enfim – mas nunca chegando à perfeição porque, como algo próprio do humano, a técnica nunca pode ser perfeita.
Mas tergiverso. O ponto aqui é que existe também uma técnica do comer. Pode-se aprendê-la em escolas especializadas, o que é bastante recomendável. Como é de se imaginar que a maioria dos leitores não pretenda fazê-lo, relato aqui algumas noções que descobri como autodidata diletante.
Deixando-se de lado a questão social do uso dos talheres, é preciso aprender a preparar os sentidos. O primeiro passo para isso é conhecer os alimentos e sua história. Como você pretende descobrir o sabor de jabuticaba na calda do sorvete de creme, digamos, se nunca provou uma jabuticaba? Por isso é importante provar alimentos frescos, individualmente. Assim é possível conhecer seu gosto característico.
Quanto à história do alimento, serve para saber em que época do ano pedir um prato com mariscos sem risco de intoxicação e também para impressionar as gurias com seu discurso a respeito daquele tipo de chicória que cresce apenas em uma ilha perto de Veneza – não esqueça de fazer a cara de erudito.
Depois de estudar o sabor dos alimentos, você está pronto para testar seus conhecimentos na prática. Lembre-se de que se saboreia a comida primeiro com os olhos, depois com o nariz e finalmente com a língua. Todo aquele frufru dos restaurantes chiques na montagem do prato não é só frescura. Experimente colocar um ramo de salsa no arroz branco. Fica muito mais apetitoso, não?
O mesmo em relação ao olfato. Um defeito necessário dos restaurantes é não se poder sentir o cheiro da comida sendo preparada – ao menos nas boas casas do ramo. Nada abre mais o apetite do que o odor vindo da cozinha.
Note que saboreamos a comida não na língua, mas no cérebro. As papilas gustativas simplesmente transmitem impulsos elétricos ao sistema nervoso central, onde são interpretados. Mas neste processo interfere o estado psicológico. Uma pessoa deprimida vai achar até foie-gras algo insosso.
O cheiro e a visão da comida predispõem a apreciá-la melhor, assim como o ambiente do local. Música de teclado eletrônico ao vivo ou luz demais são gastronomicamente broxantes. Estar entre amigos em um ambiente pelo qual se guarda algum afeto, por outro lado, faz a comida ter um sabor muito melhor. Por isso a comidinha da mamãe é muito melhor que a de qualquer restaurante. A lição que fica é, quando possível, cozinhar em casa.
Outra boa dica é evitar café, cigarros ou bebidas fortes antes de uma refeição que prometa ser deliciosa. Estas substâncias amortecem as papilas gustativas e prejudicam o olfato. Talvez até a visão, dependendo de quanto uísque a pessoa beber. Durante a refeição, beba água, cerveja ou vinho. Se pedir uma Coca Diet, você se arrisca a ser assassinado pelo chef com uma bela faca de aço Solingen. Bebidas doces como refrigerantes e sucos mascaram o sabor.
Evite misturar tudo no prato em uma gororoba. Ao menos prove cada preparação em separado primeiro. Ao colocar os pedaços na boca, deixe que descansem um segundo sobre todos os pontos da língua antes de começar a mastigar. Depois de engolir, preste atenção nos sabores mais sutis que surgem com a ação da saliva sobre as substâncias químicas – cada uma tem um tempo de permanência até se desintegrar.
O importante mesmo é treinar e treinar, comer e comer, sempre curioso e aberto às novas experiências como as crianças. E sempre com a mesma seriedade com que as crianças brincam.
(Publicado originalmente na edição 27, de dezembro de 2004, da revista Semana 3)
0 Comments:
Post a Comment
<< Home