Marcelo Träsel, agosto de 2005
Cozinha teuto-brasileira
Não sei em Campinas, mas nos arredores de Porto Alegre e interior do Rio Grande do Sul existem muitos descendentes de alemães. Eu mesmo nasci em uma cidade onde muitos idosos falam só alemão em casa até hoje. No dia 25 de julho se comemorou os 180 anos da chegada da primeira leva de imigrantes ao Estado. Uma boa chance de lembrar alguns pratos da infância.
A comida alemã pode parecer uma droga à primeira vista. De fato, muita coisa é ruim mesmo. Não é todo mundo que suporta pão de milho com presunto e geléia, joelho de porco cozido por horas e horas ou uma gelatina de miúdos diversos cortada em fatias e apelidada “queijo de porco”. Mas a culinária teutônica tem seus momentos e talvez o melhor adjetivo para ela seja “familiar”.
É comida forte, com muita gordura e proteína, preparada com ingredientes considerados de segunda classe por muita gente. O motivo é simples: os imigrantes que vieram para o Brasil há dois séculos eram pobres já na Alemanha; imagine-se aqui. Estavam acostumados a aproveitar todo pedaço de comida em que punham a mão. (Meu avô, que nunca foi pobre, costumava guardar meu almoço na geladeira e trazê-lo para a mesa na janta, se teimasse em deixar comida no prato. Ah, a pedagogia germânica!)
Muitas receitas foram adaptadas aos ingredientes e clima brasileiros. Exímios padeiros, os germânicos passaram a usar milho e aipim na massa. Deram um jeito de transformar todas as novas frutas tropicais em doces e schmiers [geléias] e bolos chamados “cucas” [Kuchen]. O “café colonial” é a expressão máxima desta culinária, com uma variedade barroca de pães, bolos, embutidos e geléias. Vale a pena visitar os restaurantes especializados em uma viagem ao Sul.
A seguir, duas receitas de família favoritas.
Chucrute - o Sauerkraut [planta azeda] é um dos pratos mais famosos da culinária alemã. Repolho era uma das poucas verduras que davam bem na Europa, mas os camponeses tinham de preservar o produto da colheita até o ano seguinte. Decidiram salgá-lo e fazer uma conserva. As frutas viravam doces e as carnes, lingüiças, pelo mesmo motivo: não havia geladeira.
Se você comeu e não gostou de chucrute em um restaurante, provavelmente era uma enganação feita com repolho fresco e vinagre. O verdadeiro chucrute só leva sal. Pique ele beeem fininho, coloque em uma vasilha grande e salgue. Mas salgue para valer! Deixe da noite para o dia, quando o sal terá puxado a água do repolho. Escorra, ponha em um pote de vidro bem limpo e complete com água fervida ou filtrada e salgada. Feche bem, talvez colocando um plástico entre a boca do vidro e a tampa. Deixe-o quieto por dois a três meses, visitando toda semana para tirar bolhas de ar e eventuais partes estragadas.
Quando estiver pronto, pique lingüiça ou bacon, frite com bastante manteiga ou banha em uma panela e acrescente o chucrute enxaguado ao menos três vezes. Cuidado para não cozinhar, o objetivo é só esquentá-lo.
Spätzle - em alguns lugares do Sul, esta massa caseira é conhecida como Klösse. É fácil de fazer e vai muito bem com molhos de carne ou queijo. Mas uma das receitas mais clássicas leva apenas cebola frita.
Com cerca de 300g de farinha, misture sal e dois ovos inteiros. Vá mexendo com as mãos ou uma colher e acrescentando leite até obter uma massa que não escorra, mas também não seja difícil de tirar da colher. Algo a meio caminho entre pão e panqueca.
Ferva água com sal e um pouco de óleo. Pegue um naco de massa em uma colher de chá e, passando o dedo pelo fundo da colher, jogue a massa na panela, criando uma bolota disforme. Seja rápido e vá fazendo isso até acabar com a massa. Quando todas as bolotas estiverem boiando, estão cozidas. Escorra.
A partir daí, pode-se misturar os Spätzle com quase tudo. Eu gosto de fritar em banha ou manteiga uma boa quantidade de cebola, depois misturar as bolotas na frigideira com uma porção generosa de pimenta-do-reino moída na hora.
Lingüiça ou chuletas de porco fritas, chucrute e Spätzle é provavelmente a refeição mais germânica possível. Para acompanhar, abra uma boa cerveja extra.
(Publicado originalmente na edição 25, de agosto de 2004, da revista Semana 3)
Não sei em Campinas, mas nos arredores de Porto Alegre e interior do Rio Grande do Sul existem muitos descendentes de alemães. Eu mesmo nasci em uma cidade onde muitos idosos falam só alemão em casa até hoje. No dia 25 de julho se comemorou os 180 anos da chegada da primeira leva de imigrantes ao Estado. Uma boa chance de lembrar alguns pratos da infância.
A comida alemã pode parecer uma droga à primeira vista. De fato, muita coisa é ruim mesmo. Não é todo mundo que suporta pão de milho com presunto e geléia, joelho de porco cozido por horas e horas ou uma gelatina de miúdos diversos cortada em fatias e apelidada “queijo de porco”. Mas a culinária teutônica tem seus momentos e talvez o melhor adjetivo para ela seja “familiar”.
É comida forte, com muita gordura e proteína, preparada com ingredientes considerados de segunda classe por muita gente. O motivo é simples: os imigrantes que vieram para o Brasil há dois séculos eram pobres já na Alemanha; imagine-se aqui. Estavam acostumados a aproveitar todo pedaço de comida em que punham a mão. (Meu avô, que nunca foi pobre, costumava guardar meu almoço na geladeira e trazê-lo para a mesa na janta, se teimasse em deixar comida no prato. Ah, a pedagogia germânica!)
Muitas receitas foram adaptadas aos ingredientes e clima brasileiros. Exímios padeiros, os germânicos passaram a usar milho e aipim na massa. Deram um jeito de transformar todas as novas frutas tropicais em doces e schmiers [geléias] e bolos chamados “cucas” [Kuchen]. O “café colonial” é a expressão máxima desta culinária, com uma variedade barroca de pães, bolos, embutidos e geléias. Vale a pena visitar os restaurantes especializados em uma viagem ao Sul.
A seguir, duas receitas de família favoritas.
Chucrute - o Sauerkraut [planta azeda] é um dos pratos mais famosos da culinária alemã. Repolho era uma das poucas verduras que davam bem na Europa, mas os camponeses tinham de preservar o produto da colheita até o ano seguinte. Decidiram salgá-lo e fazer uma conserva. As frutas viravam doces e as carnes, lingüiças, pelo mesmo motivo: não havia geladeira.
Se você comeu e não gostou de chucrute em um restaurante, provavelmente era uma enganação feita com repolho fresco e vinagre. O verdadeiro chucrute só leva sal. Pique ele beeem fininho, coloque em uma vasilha grande e salgue. Mas salgue para valer! Deixe da noite para o dia, quando o sal terá puxado a água do repolho. Escorra, ponha em um pote de vidro bem limpo e complete com água fervida ou filtrada e salgada. Feche bem, talvez colocando um plástico entre a boca do vidro e a tampa. Deixe-o quieto por dois a três meses, visitando toda semana para tirar bolhas de ar e eventuais partes estragadas.
Quando estiver pronto, pique lingüiça ou bacon, frite com bastante manteiga ou banha em uma panela e acrescente o chucrute enxaguado ao menos três vezes. Cuidado para não cozinhar, o objetivo é só esquentá-lo.
Spätzle - em alguns lugares do Sul, esta massa caseira é conhecida como Klösse. É fácil de fazer e vai muito bem com molhos de carne ou queijo. Mas uma das receitas mais clássicas leva apenas cebola frita.
Com cerca de 300g de farinha, misture sal e dois ovos inteiros. Vá mexendo com as mãos ou uma colher e acrescentando leite até obter uma massa que não escorra, mas também não seja difícil de tirar da colher. Algo a meio caminho entre pão e panqueca.
Ferva água com sal e um pouco de óleo. Pegue um naco de massa em uma colher de chá e, passando o dedo pelo fundo da colher, jogue a massa na panela, criando uma bolota disforme. Seja rápido e vá fazendo isso até acabar com a massa. Quando todas as bolotas estiverem boiando, estão cozidas. Escorra.
A partir daí, pode-se misturar os Spätzle com quase tudo. Eu gosto de fritar em banha ou manteiga uma boa quantidade de cebola, depois misturar as bolotas na frigideira com uma porção generosa de pimenta-do-reino moída na hora.
Lingüiça ou chuletas de porco fritas, chucrute e Spätzle é provavelmente a refeição mais germânica possível. Para acompanhar, abra uma boa cerveja extra.
(Publicado originalmente na edição 25, de agosto de 2004, da revista Semana 3)
2 Comments:
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