Delfin, dezembro de 2004
Azul do filho vivo
Continuando o seu caminho de lançar bons quadrinhos com qualidade, a Conrad nos brindou, nos três últimos meses, com três álbuns importantes no que se refere ao panorama geral do underground americano: "Fabulous Furry Freak Brothers", de Gilbert Shelton; "América", de Robert Crumb; e "Blues", também de Crumb. Mas, hoje, vamos nos ater ao último, uma das mais bonitas e respeitosas edições de arte seqüencial que esta casa editorial já produziu.
A primeira virtude do material é se amparar numa pesquisa dos trabalhos do autor para compor, do modo mais completo, este livro. De modo inédito no mundo, a compilação reúne as histórias musicais já produzidas por Crumb em diversas fases de sua carreira, mixando a isto os mais importantes produtos gráficos relativos à música já realizados pelo artista.
Isto já bastaria para ser uma edição de peso. Mas não pára por aí. A qualidade técnica do álbum (impressão em papel de alta qualidade – especial para facilitar a leitura em qualquer ambiente – e capa dura) já alerta o leitor comum que aquele não é uma edição qualquer, apesar de estar sendo vendido indistintamente em livrarias e bancas de revistas. Como é comum no caso dos álbuns de luxo, o preço é sempre um pouco mais salgado. Mas eu espero conseguir convencer você de que este álbum, mais um exemplo dos novos bons tradutores que aparecem a cada dia no Brasil (ele foi vertido ao português – e mantido coerentemente em inglês em determinados trechos – por Daniel Galera), vale a pena.
Afinal, de contas, o que é que se vai encontrar neste "Blues"? Certamente, lições de história americana. Preconceitos de brancos e negros quanto à velha música de dor, aquela que machuca a busca pela alma atormentada de cada antigo escravo. Também a crítica corrosiva de um autor obsessivo, que faz da retratação das verdades nunca ditas um dos focos de sua obra. Algumas destas verdades estão aqui, por mais que se queira fechar os olhos revisionistas do mundo globalizado e politicamente correto. Sim, pois aqui não existem afro-americanos, mas, sim, negros, negros tão negros que são azuis, azuis como sua música, tristes como sua história.
Também resta espaço para alegria. Afinal de contas, como cronista fiel de sua visão de mundo, Crumb sabe que o maniqueísmo de seu nanquim constrói mundos cheios de tonalidades, pelo qual caminham todos os seus personagens. Pois o mundo não é preto-e-branco como o seu traço ácido. Disso, ele sabe bem.
Mas podemos ver aqui, finalmente, suas cores, justamente nos trabalhos fonográficos já realizados pelo autor. O mais notório, todos sabem, é a capa do clássico "Cheap Thrills", de Janis Joplin. Mas é uma exceção ao resto dos álbuns e pôsters ilustrados por Crumb, que, em geral, pouco ou nada tem da linguagem de quadrinhos que o notabilizam. É a chance rara de ver um ilustrador que retrata a sua paixão musical com sensibilidade e adequação, sem se render a apelos que não venham do coração. Pois Crumb também é um filho do blues.
Filhos assim é que o mantém vivo.
(Publicado originalmente na edição 27, de dezembro de 2004, da revista Semana 3)
Continuando o seu caminho de lançar bons quadrinhos com qualidade, a Conrad nos brindou, nos três últimos meses, com três álbuns importantes no que se refere ao panorama geral do underground americano: "Fabulous Furry Freak Brothers", de Gilbert Shelton; "América", de Robert Crumb; e "Blues", também de Crumb. Mas, hoje, vamos nos ater ao último, uma das mais bonitas e respeitosas edições de arte seqüencial que esta casa editorial já produziu.
A primeira virtude do material é se amparar numa pesquisa dos trabalhos do autor para compor, do modo mais completo, este livro. De modo inédito no mundo, a compilação reúne as histórias musicais já produzidas por Crumb em diversas fases de sua carreira, mixando a isto os mais importantes produtos gráficos relativos à música já realizados pelo artista.
Isto já bastaria para ser uma edição de peso. Mas não pára por aí. A qualidade técnica do álbum (impressão em papel de alta qualidade – especial para facilitar a leitura em qualquer ambiente – e capa dura) já alerta o leitor comum que aquele não é uma edição qualquer, apesar de estar sendo vendido indistintamente em livrarias e bancas de revistas. Como é comum no caso dos álbuns de luxo, o preço é sempre um pouco mais salgado. Mas eu espero conseguir convencer você de que este álbum, mais um exemplo dos novos bons tradutores que aparecem a cada dia no Brasil (ele foi vertido ao português – e mantido coerentemente em inglês em determinados trechos – por Daniel Galera), vale a pena.
Afinal, de contas, o que é que se vai encontrar neste "Blues"? Certamente, lições de história americana. Preconceitos de brancos e negros quanto à velha música de dor, aquela que machuca a busca pela alma atormentada de cada antigo escravo. Também a crítica corrosiva de um autor obsessivo, que faz da retratação das verdades nunca ditas um dos focos de sua obra. Algumas destas verdades estão aqui, por mais que se queira fechar os olhos revisionistas do mundo globalizado e politicamente correto. Sim, pois aqui não existem afro-americanos, mas, sim, negros, negros tão negros que são azuis, azuis como sua música, tristes como sua história.
Também resta espaço para alegria. Afinal de contas, como cronista fiel de sua visão de mundo, Crumb sabe que o maniqueísmo de seu nanquim constrói mundos cheios de tonalidades, pelo qual caminham todos os seus personagens. Pois o mundo não é preto-e-branco como o seu traço ácido. Disso, ele sabe bem.
Mas podemos ver aqui, finalmente, suas cores, justamente nos trabalhos fonográficos já realizados pelo autor. O mais notório, todos sabem, é a capa do clássico "Cheap Thrills", de Janis Joplin. Mas é uma exceção ao resto dos álbuns e pôsters ilustrados por Crumb, que, em geral, pouco ou nada tem da linguagem de quadrinhos que o notabilizam. É a chance rara de ver um ilustrador que retrata a sua paixão musical com sensibilidade e adequação, sem se render a apelos que não venham do coração. Pois Crumb também é um filho do blues.
Filhos assim é que o mantém vivo.
(Publicado originalmente na edição 27, de dezembro de 2004, da revista Semana 3)
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