Bruno Ribeiro, set/out/nov de 2004
Paraíso, um botequim que nunca fecha
A morte é injusta porque nos priva da companhia de pessoas muito interessantes. Sinto profundamente a perda de algumas dessas almas privilegiadas. E o pior é que se foram antes que eu pudesse ter dividido com elas alguma conta de bar. Por isso, dentro do meu ateísmo fajuto, nutro uma esperança infantil de que exista vida após a morte e que o paraíso seja um botequim que nunca fecha – e onde a cerveja esteja sempre gelada.
Minha mesa neste botequim já estará reservada e eu a dividirei com amigos queridos – anônimos e famosos. Pela manhã abrirei um jornal repleto de boas notícias e Rubem Braga e Nelson Rodrigues assinarão suas crônicas diárias, que falarão de amizade, amor e de um futebol astral, onde sempre vencerá o melhor e não o mais rico.
Por volta das onze chegarão Vinícius de Moraes e Tom Jobim e pedirão uísque e várias rodadas de chope. Falarão comigo sobre a brusca poesia da mulher amada e Leila Diniz, vestindo um eterno biquíni verde-água, será minha namorada. E vai ser como amar todas as mulheres do mundo, porque não haverá ciúme.
O almoço será servido lá pela uma e meia da tarde e comeremos à vontade, peixe com coco, camarões graúdos, surubim na pedra, e haverá uma roda de samba com Cartola e Nelson Cavaquinho, Ismael Silva e Noel Rosa, Clara Nunes e João Nogueira. Candeia será um anjo moreno e o ambiente será tomado por uma atmosfera de pura anarquia embriagada. Darcy Ribeiro fará um discurso comovido, falando que a mestiçagem nacional finalmente encontrou a terra de Pindorama. Glauber Rocha, esperto, filmará este momento.
Numa grande mesa de pau-brasil, ao fundo, estarão os escritores, confabulando, entre um pedaço de pernil e um gole de cachaça. Oswald de Andrade entrará numa baita polêmica com Manuel Bandeira acerca da traição de Capitu. Um defenderá que ela chifrou Bentinho; outro que não. Machado de Assis, na cabeceira, irá engasgar com a farofa, divertindo-se muito com a discussão. E Carlos Drummond, agora um anjo torto, tomará seu conhaque em silêncio, comovido como o diabo.
Meu lugar preferido será o balcão, onde estarão apoiados Marighella e Lamarca. Recordaremos os tempos sombrios, mas prevalecerá o bom humor e o otimismo. Os guerrilheiros do Araguaia – Osvaldão à frente – chegarão da selva, mas, ao invés de fuzis, trarão violões. A farra continuará ad eternum. No jardim do Éden – projetado por Burle Marx –, Luís Carlos Prestes e Olga se amarão, livremente.
Já é noite alta. Pelo botequim circularão Henfil e Mário Lago, Cândido Portinari e Zumbi dos Palmares, Elis Regina e Raul Seixas, Grande Otelo e Monteiro Lobato, Santos Dumont e Garrincha. O ambiente será barulhento e abafado, mas não faltará chope gelado para ninguém. Nem faltará solidariedade – alguém sempre ajudará o deslocado a enturmar-se rapidamente. A vizinhança não reclamará da cantoria nas mesas e ninguém precisará pagar a conta. E, muito importante, a cachaça não causará dependência, nem matará de cirrose – até porque a vida será eterna.
Se for verdade que o paraíso é como a gente quer, então para lá estará transferido o Brasil real, que revela os melhores instintos. Ao Brasil oficial, caricato e burlesco, será reservado o inferno. E o nome do botequim será Bar Esperança – o último que fecha. Se não for assim, não quero ir. Deixem-me mais um pouco por aqui, bebendo em nome desse país doce e complicado.
(Publicado originalmente na edição 26, de set/out/nov de 2004, da revista Semana 3)
A morte é injusta porque nos priva da companhia de pessoas muito interessantes. Sinto profundamente a perda de algumas dessas almas privilegiadas. E o pior é que se foram antes que eu pudesse ter dividido com elas alguma conta de bar. Por isso, dentro do meu ateísmo fajuto, nutro uma esperança infantil de que exista vida após a morte e que o paraíso seja um botequim que nunca fecha – e onde a cerveja esteja sempre gelada.
Minha mesa neste botequim já estará reservada e eu a dividirei com amigos queridos – anônimos e famosos. Pela manhã abrirei um jornal repleto de boas notícias e Rubem Braga e Nelson Rodrigues assinarão suas crônicas diárias, que falarão de amizade, amor e de um futebol astral, onde sempre vencerá o melhor e não o mais rico.
Por volta das onze chegarão Vinícius de Moraes e Tom Jobim e pedirão uísque e várias rodadas de chope. Falarão comigo sobre a brusca poesia da mulher amada e Leila Diniz, vestindo um eterno biquíni verde-água, será minha namorada. E vai ser como amar todas as mulheres do mundo, porque não haverá ciúme.
O almoço será servido lá pela uma e meia da tarde e comeremos à vontade, peixe com coco, camarões graúdos, surubim na pedra, e haverá uma roda de samba com Cartola e Nelson Cavaquinho, Ismael Silva e Noel Rosa, Clara Nunes e João Nogueira. Candeia será um anjo moreno e o ambiente será tomado por uma atmosfera de pura anarquia embriagada. Darcy Ribeiro fará um discurso comovido, falando que a mestiçagem nacional finalmente encontrou a terra de Pindorama. Glauber Rocha, esperto, filmará este momento.
Numa grande mesa de pau-brasil, ao fundo, estarão os escritores, confabulando, entre um pedaço de pernil e um gole de cachaça. Oswald de Andrade entrará numa baita polêmica com Manuel Bandeira acerca da traição de Capitu. Um defenderá que ela chifrou Bentinho; outro que não. Machado de Assis, na cabeceira, irá engasgar com a farofa, divertindo-se muito com a discussão. E Carlos Drummond, agora um anjo torto, tomará seu conhaque em silêncio, comovido como o diabo.
Meu lugar preferido será o balcão, onde estarão apoiados Marighella e Lamarca. Recordaremos os tempos sombrios, mas prevalecerá o bom humor e o otimismo. Os guerrilheiros do Araguaia – Osvaldão à frente – chegarão da selva, mas, ao invés de fuzis, trarão violões. A farra continuará ad eternum. No jardim do Éden – projetado por Burle Marx –, Luís Carlos Prestes e Olga se amarão, livremente.
Já é noite alta. Pelo botequim circularão Henfil e Mário Lago, Cândido Portinari e Zumbi dos Palmares, Elis Regina e Raul Seixas, Grande Otelo e Monteiro Lobato, Santos Dumont e Garrincha. O ambiente será barulhento e abafado, mas não faltará chope gelado para ninguém. Nem faltará solidariedade – alguém sempre ajudará o deslocado a enturmar-se rapidamente. A vizinhança não reclamará da cantoria nas mesas e ninguém precisará pagar a conta. E, muito importante, a cachaça não causará dependência, nem matará de cirrose – até porque a vida será eterna.
Se for verdade que o paraíso é como a gente quer, então para lá estará transferido o Brasil real, que revela os melhores instintos. Ao Brasil oficial, caricato e burlesco, será reservado o inferno. E o nome do botequim será Bar Esperança – o último que fecha. Se não for assim, não quero ir. Deixem-me mais um pouco por aqui, bebendo em nome desse país doce e complicado.
(Publicado originalmente na edição 26, de set/out/nov de 2004, da revista Semana 3)
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