Bruno Ribeiro, agosto de 2004
Zeca Pagodinho expulso do Bar do Pachola
Um dia, certamente num sábado, o Zeca Pagodinho baixou no Mercado Municipal de Campinas. Veio sozinho, com uma roupa esporte, meio atleta, meio disfarce.
Naquela época ele ainda não era o artista estelar que é hoje, mas já tinha lá o seu nome na praça. Entrou no Bar do Pachola respeitosamente, como se pisasse numa catedral. Bateu a mão no balcão: “Me vê uma branca”. Virou numa só talagada, fez careta, cuspiu no chão. E sorriu, estalando a língua.
Duas, três. Na quarta dose de pinga apareceu um pandeiro. Depois um cavaquinho. Um balde de plástico ficou sendo o repique. E estava armado o pagode. Todo mundo queria acompanhar o Zeca. Na cachaça, principalmente. E dá-lhe birita na mesa para locupletar o vazio da malandragem.
A notícia correu e não tardou para que meia Campinas estivesse se acotovelando para ver de perto o sambista carioca. O ambiente ficou impossível. Para levar o copo de cerveja à boca, o sujeito tinha de ter, no mínimo, noções básicas de contorcionismo. O bodum misturou-se à fumaça dos cigarros e do defumador da loja de umbanda ao lado; e o boteco ficou parecendo uma sauna espírita de tanto exucaveira suando junto.
Foi aí que o Pachola, mais molhado do que tampa de marmita, se deu conta de que havia perdido o controle da situação. Bateu o olho no Zeca e notou o detalhe crucial na roupa de moletom que ele usava: não havia bolsos!
Vislumbrando a ausência da carteira e a iminência do fiado (ou do calote), tomou uma providência. Pequeno e ágil como um ponteiro de segundos, foi cutucando com o garfo, abrindo passagem, empurra daqui, empurra de lá. “O senhor faça a gentileza de se retirar do meu botequim”, bradou ao nosso artista, com a polidez que lhe era peculiar.
E o Pachola lá se importava com o cartaz do Zeca Pagodinho? “O meu negócio não é samba cantado, é samba chorado”, vivia repetindo. E foi feita a sua vontade. Até porque o Pachola só falava uma vez. A segunda poderia vir acompanhada de um banho de água fervente ou carinho pior. O repique voltou à sua função original de balde, o Zeca levou consigo a abúlica caterva e, dizem, nunca contou essa história para ninguém, para não macular a biografia.
Tempos depois, vi uma entrevista do Zeca na televisão, na qual ele afirmava jamais ter sido expulso de um bar. Senti, pelo sutil vacilo na entonação de voz, que ele não estava lá muito seguro do que acabara de dizer. Desviou o olhar para o chão e deixou entrever na face um princípio de riso ou ironia.
Contam as testemunhas oculares que, anos mais tarde, Zeca Pagodinho voltou. Terno branco alinhado, um segurança logo atrás. Parou diante do bar, puxou um cigarro do paletó, uma caixa de fósforos e acendeu, dando uma longa tragada. Deixou a fumaça azulada sair pelo nariz, sempre encarando o Pachola. Como cantou o Paulinho da Viola, fez-se uma pausa de mil compassos. E quem falou primeiro foi o Zeca: “E aí, mêrmão. Tá lembrado de mim?”.
E o Pachola, sem abaixar a guarda, fez que sim, movendo a cabeça para baixo e para cima. O Zeca deu outra tragada funda no cigarro e soltou uma bonita baforada em forma de anéis. Jogou o resto no chão, esmagando com a ponta do bicolor. E disse, para todo mundo ouvir: “Pois então; eu vim aqui para te dizer que saí do hotel para tomar uma cerveja. Mas não vai ser no teu bar”.
Dito isto, virou as costas e saiu triunfante, com o agridoce sabor da vitória escorrendo pelo canto da boca. Feito cachaça.
(Publicado originalmente na edição 25, de agosto de 2004, da revista Semana 3)
Um dia, certamente num sábado, o Zeca Pagodinho baixou no Mercado Municipal de Campinas. Veio sozinho, com uma roupa esporte, meio atleta, meio disfarce.
Naquela época ele ainda não era o artista estelar que é hoje, mas já tinha lá o seu nome na praça. Entrou no Bar do Pachola respeitosamente, como se pisasse numa catedral. Bateu a mão no balcão: “Me vê uma branca”. Virou numa só talagada, fez careta, cuspiu no chão. E sorriu, estalando a língua.
Duas, três. Na quarta dose de pinga apareceu um pandeiro. Depois um cavaquinho. Um balde de plástico ficou sendo o repique. E estava armado o pagode. Todo mundo queria acompanhar o Zeca. Na cachaça, principalmente. E dá-lhe birita na mesa para locupletar o vazio da malandragem.
A notícia correu e não tardou para que meia Campinas estivesse se acotovelando para ver de perto o sambista carioca. O ambiente ficou impossível. Para levar o copo de cerveja à boca, o sujeito tinha de ter, no mínimo, noções básicas de contorcionismo. O bodum misturou-se à fumaça dos cigarros e do defumador da loja de umbanda ao lado; e o boteco ficou parecendo uma sauna espírita de tanto exucaveira suando junto.
Foi aí que o Pachola, mais molhado do que tampa de marmita, se deu conta de que havia perdido o controle da situação. Bateu o olho no Zeca e notou o detalhe crucial na roupa de moletom que ele usava: não havia bolsos!
Vislumbrando a ausência da carteira e a iminência do fiado (ou do calote), tomou uma providência. Pequeno e ágil como um ponteiro de segundos, foi cutucando com o garfo, abrindo passagem, empurra daqui, empurra de lá. “O senhor faça a gentileza de se retirar do meu botequim”, bradou ao nosso artista, com a polidez que lhe era peculiar.
E o Pachola lá se importava com o cartaz do Zeca Pagodinho? “O meu negócio não é samba cantado, é samba chorado”, vivia repetindo. E foi feita a sua vontade. Até porque o Pachola só falava uma vez. A segunda poderia vir acompanhada de um banho de água fervente ou carinho pior. O repique voltou à sua função original de balde, o Zeca levou consigo a abúlica caterva e, dizem, nunca contou essa história para ninguém, para não macular a biografia.
Tempos depois, vi uma entrevista do Zeca na televisão, na qual ele afirmava jamais ter sido expulso de um bar. Senti, pelo sutil vacilo na entonação de voz, que ele não estava lá muito seguro do que acabara de dizer. Desviou o olhar para o chão e deixou entrever na face um princípio de riso ou ironia.
Contam as testemunhas oculares que, anos mais tarde, Zeca Pagodinho voltou. Terno branco alinhado, um segurança logo atrás. Parou diante do bar, puxou um cigarro do paletó, uma caixa de fósforos e acendeu, dando uma longa tragada. Deixou a fumaça azulada sair pelo nariz, sempre encarando o Pachola. Como cantou o Paulinho da Viola, fez-se uma pausa de mil compassos. E quem falou primeiro foi o Zeca: “E aí, mêrmão. Tá lembrado de mim?”.
E o Pachola, sem abaixar a guarda, fez que sim, movendo a cabeça para baixo e para cima. O Zeca deu outra tragada funda no cigarro e soltou uma bonita baforada em forma de anéis. Jogou o resto no chão, esmagando com a ponta do bicolor. E disse, para todo mundo ouvir: “Pois então; eu vim aqui para te dizer que saí do hotel para tomar uma cerveja. Mas não vai ser no teu bar”.
Dito isto, virou as costas e saiu triunfante, com o agridoce sabor da vitória escorrendo pelo canto da boca. Feito cachaça.
(Publicado originalmente na edição 25, de agosto de 2004, da revista Semana 3)
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