Marcelo Träsel, outubro de 2005
O gourmet parvenu
Ao contrário do que muita gente possa pensar, supostos gourmets não costumam ser gourmets o tempo todo. Se algum conhecido seu fizer questão de demonstrar seus conhecimentos gastronômicos mesmo em uma praça de alimentação de shopping center, trata-se não de um discípulo de Brillat-Savarin, mas de um esnobe novo-rico, ou, para nos mantermos dentro da francofilia que permeia o mundo da cozinha, de um “gourmet parvenu”. Os maiores representantes da classe são os enólogos de fim de semana, discípulos de Parker, que desmontei na última coluna.
Um bom modelo para os gourmets − e de resto para todos os homens de bem − é o tradicional cavalheiro britânico. Os gentis-homens de Sua Majestade têm mente cultivada, bom-gosto e refinamento, mas sabem o momento de aplicar tudo isso. De uma maneira geral, evitam constranger os mortais comuns exibindo seus atributos e abominam ser inoportunos. Diz-se que um verdadeiro gentil-homem deixa seu mordomo gastar os sapatos novos antes de começar a usá-los, para evitar o risco de ser tomado por um novo-rico perdulário. Dicas sobre onde comprar cartolas e bengalas podem ser obtidas com o colega de Semana 3 Alexandre Soares Silva.
Voltando à vaca-fria, há hora para elogiar a crocância das ovas de salmão, e há hora para se atirar em um miojão sabor picanha grelhada com tubaína de groselha. Mesmo o messias culinário francês Joel Robuchon já deve ter comido pão com cassoulet ao meio-dia de um domingo modorrento. Exigir de um cozinheiro ser gourmet em tempo integral é como esperar de um contador que se divirta fazendo a declaração de Imposto de Renda dos vizinhos no tempo livre. Nada mais chato do que ser gastrônomo o tempo inteiro. Estraga programas coletivos ao negar-se a comer “um mero xis-salada”, ou perde um dia de sol na praia cozinhando algo digno de sua habilidade culinária.
Existe, é claro, o aspecto sanitário da coisa. Restaurantes de beira de estrada podem negligenciar alguns preceitos básicos de higiene, sobretudo no armazenamento de carnes e controle de pestes. A afirmação de que isso não acontece em casas de alto nível, entretanto, é bastante discutível − “discutível” porque não fica bem a um gentil-homem dizer que dá tudo no mesmo, como mostra, por exemplo, o rude Anthony Bourdain em “Cozinha Confidencial” [Cia. das Letras, absurdos R$ 51,50]. De qualquer modo, algumas bactérias, vermes e fungos passeando pelo corpo costumam ser saudáveis, já que ajudam o sistema imune a se exercitar. Pesquisas indicam, inclusive, que gente muito limpinha tem maior tendência a adquirir síndromes auto-imunes.
De fato, uma das melhores refeições que já comi foi em um posto de gasolina no noroeste do Rio Grande do Sul, perto de Frederico Westphalen. Ofereciam um queijo cru produzido ali perto, com aquele insubstituível ranço de granja. Os ovos eram do galinheiro do proprietário do restaurante. Os bifes, frescos e macios. Para acompanhar, salada de batatas caseira e conservas de pepino e cebola também feitas no local. Comida que atinge os principais critérios da gastronomia contemporânea: frescor e domínio do ingrediente principal no sabor. Mas um “parvenu” torceria o nariz, fosse pela aparente simplicidade, fosse pelo medo de salmonelas.
Outra característica marcante deste grupo social é a tendência a estragar a comida através do “barroquismo culinário”. Acreditam que, quanto mais ingredientes sofisticados tiver, melhor fica um prato. Certa vez, em um churrasco, um sujeito arruinou um suculento pedaço de carne de búfalo, que não pedia nada além de sal, com vinho tinto em excesso. Ainda por cima, vinho de quinta categoria. Colocar todos os legumes da geladeira em uma omelete, submergir qualquer cozido em creme de leite e misturar todos os temperos da despensa são também comportamentos típicos.
***
Animado pela experiência com esta coluna — ou seria envaidecido? —, resolvi criar um blog culinário na comunidade insanus.org, onde já hospedo o meu “Martelada” [www.insanus.org/martelada]. Chama-se “Garfada” e é um projeto coletivo. Pretendemos fazer crítica gastronômica de verdade e discutir receitas e técnicas. O endereço é: www.insanus.org/garfada.
(Publicado originalmente na edição 34, de outubro de 2005, da revista Semana 3)
Ao contrário do que muita gente possa pensar, supostos gourmets não costumam ser gourmets o tempo todo. Se algum conhecido seu fizer questão de demonstrar seus conhecimentos gastronômicos mesmo em uma praça de alimentação de shopping center, trata-se não de um discípulo de Brillat-Savarin, mas de um esnobe novo-rico, ou, para nos mantermos dentro da francofilia que permeia o mundo da cozinha, de um “gourmet parvenu”. Os maiores representantes da classe são os enólogos de fim de semana, discípulos de Parker, que desmontei na última coluna.
Um bom modelo para os gourmets − e de resto para todos os homens de bem − é o tradicional cavalheiro britânico. Os gentis-homens de Sua Majestade têm mente cultivada, bom-gosto e refinamento, mas sabem o momento de aplicar tudo isso. De uma maneira geral, evitam constranger os mortais comuns exibindo seus atributos e abominam ser inoportunos. Diz-se que um verdadeiro gentil-homem deixa seu mordomo gastar os sapatos novos antes de começar a usá-los, para evitar o risco de ser tomado por um novo-rico perdulário. Dicas sobre onde comprar cartolas e bengalas podem ser obtidas com o colega de Semana 3 Alexandre Soares Silva.
Voltando à vaca-fria, há hora para elogiar a crocância das ovas de salmão, e há hora para se atirar em um miojão sabor picanha grelhada com tubaína de groselha. Mesmo o messias culinário francês Joel Robuchon já deve ter comido pão com cassoulet ao meio-dia de um domingo modorrento. Exigir de um cozinheiro ser gourmet em tempo integral é como esperar de um contador que se divirta fazendo a declaração de Imposto de Renda dos vizinhos no tempo livre. Nada mais chato do que ser gastrônomo o tempo inteiro. Estraga programas coletivos ao negar-se a comer “um mero xis-salada”, ou perde um dia de sol na praia cozinhando algo digno de sua habilidade culinária.
Existe, é claro, o aspecto sanitário da coisa. Restaurantes de beira de estrada podem negligenciar alguns preceitos básicos de higiene, sobretudo no armazenamento de carnes e controle de pestes. A afirmação de que isso não acontece em casas de alto nível, entretanto, é bastante discutível − “discutível” porque não fica bem a um gentil-homem dizer que dá tudo no mesmo, como mostra, por exemplo, o rude Anthony Bourdain em “Cozinha Confidencial” [Cia. das Letras, absurdos R$ 51,50]. De qualquer modo, algumas bactérias, vermes e fungos passeando pelo corpo costumam ser saudáveis, já que ajudam o sistema imune a se exercitar. Pesquisas indicam, inclusive, que gente muito limpinha tem maior tendência a adquirir síndromes auto-imunes.
De fato, uma das melhores refeições que já comi foi em um posto de gasolina no noroeste do Rio Grande do Sul, perto de Frederico Westphalen. Ofereciam um queijo cru produzido ali perto, com aquele insubstituível ranço de granja. Os ovos eram do galinheiro do proprietário do restaurante. Os bifes, frescos e macios. Para acompanhar, salada de batatas caseira e conservas de pepino e cebola também feitas no local. Comida que atinge os principais critérios da gastronomia contemporânea: frescor e domínio do ingrediente principal no sabor. Mas um “parvenu” torceria o nariz, fosse pela aparente simplicidade, fosse pelo medo de salmonelas.
Outra característica marcante deste grupo social é a tendência a estragar a comida através do “barroquismo culinário”. Acreditam que, quanto mais ingredientes sofisticados tiver, melhor fica um prato. Certa vez, em um churrasco, um sujeito arruinou um suculento pedaço de carne de búfalo, que não pedia nada além de sal, com vinho tinto em excesso. Ainda por cima, vinho de quinta categoria. Colocar todos os legumes da geladeira em uma omelete, submergir qualquer cozido em creme de leite e misturar todos os temperos da despensa são também comportamentos típicos.
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Animado pela experiência com esta coluna — ou seria envaidecido? —, resolvi criar um blog culinário na comunidade insanus.org, onde já hospedo o meu “Martelada” [www.insanus.org/martelada]. Chama-se “Garfada” e é um projeto coletivo. Pretendemos fazer crítica gastronômica de verdade e discutir receitas e técnicas. O endereço é: www.insanus.org/garfada.
(Publicado originalmente na edição 34, de outubro de 2005, da revista Semana 3)
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