Marcelo Träsel, ago/set de 2005
De vinhos e biologia
Hoje em dia se diz muita bobagem sobre vinho. Especialistas como Robert Parker e diletantes oriundos de degustações de fim de semana não podem tomar uma taça sem encontrar traços de frutas vermelhas — talvez porque uva seja uma fruta vermelha... —, madeiras diversas, raposa, asfalto e até conchas quebradas. Bem, este colunista tem um alívio para quem nunca concorda com estes sujeitos: é simplesmente impossível, biológica e epistemologicamente, concordar com o gosto de alguém.
Uma leitura de “A árvore do conhecimento” [Palas Athena, R$ 44], dos chilenos Maturana e Varela, ajuda a esclarecer as coisas. Os dois biólogos tentam na obra estabelecer as bases biológicas do conhecimento humano. Os meandros da teorização são complexos e não interessam muito aqui nesta revista dedicada ao espairecimento. Basta saber: o que chamamos de “comportamento” de um organismo é a manutenção de correlações internas. O sistema nervoso não sabe que está caminhando, limita-se a manter certo nível de tensão muscular, de acordo com as informações sobre a posição do corpo no espaço e resistência do solo enviadas pelos cinco sentidos. Pois bem. Acontece que, como cada ser vivo cresce e organiza seu sistema nervoso de maneira diferente, porque é submetido a estímulos diferentes, sua “estrutura” está preparada para interpretar as sensações de uma maneira específica a ele e somente a ele.
Ora, tudo o que “sentimos”, sentimos apenas na mente. Nossos olhos, nariz, boca e ouvidos não sentem nada, apenas enviam sinais elétricos que são interpretados no cérebro. O mesmo cérebro que foi estruturado de acordo com nossa história de vida única, de modo que só pode interpretar as sensações à sua maneira única. Em outras palavras: ninguém pode sentir o mesmo gosto que outra pessoa sente ao tomar um vinho.
É óbvio que existe um mínimo denominador comum. Afinal, comemos as mesmas coisas que nossos concidadãos comem durante uma vida inteira, então aprendemos o que é gosto de abóbora, cor de ameixa, cheiro de abacaxi e tudo o mais. Mas a partir do momento em que se entra no sabor de asfalto derretido ou de cerejas crocantes, bem, aí é cada um por si, meu caro!
Nada surpreendente que Lawrence Osborne chegue à mesma conclusão em seu excelente “O connaisseur acidental” [Intrínseca, R$ 39]. O jornalista viaja pelos principais centros produtores de vinho e visita as principais vinícolas, para descobrir o que define um bom vinho e de onde vêm as associações mentais piradas de Robert Parker. Osborne inclui em cada parágrafo goles do melhor humor britânico e não poupa nem a si mesmo, fazendo pouco de suas próprias habilidades degustativas sempre que pode.
Lá pelas tantas, ao experimentar um vinho cujo nome infelizmente não posso reproduzir aqui, já que esqueci de sublinhar a passagem, sente que o líquido tem o sabor da biblioteca de seu pai. Com o detalhe de que seu pai jamais teve uma. Mas por que o vinho não poderia lhe causar essa sensação? Não será esse o papel do vinho, bem como de qualquer obra de arte: evocar imagens que não existem? Em todo caso, foi o único durante a tal degustação a associar o sabor com uma biblioteca paterna. A sensação era dele e apenas dele.
Como o gosto não é e não pode ser universal, o que define a posição de um vinho nas listas de revistas especializadas e connaisseurs, mostra Osborne, é um misto de marketing e às vezes qualidade. Há vinhos tão bons quanto o Lafite por aí, mas nem todos têm a família Rothschild por trás. Como coloca o autor, pagar 600 dólares por uma garrafa não passa de um ato de superstição. Ou, nas palavras do vinhateiro californiano Bill Cadman, “os ricos gostam que lhes digam do que eles devem gostar”.
Evidentemente, como acontece com outros alimentos, há um mínimo denominador comum no mundo dos vinhos. Um processo cuidadoso de fermentação, um terroir que traga características interessantes à bebida, barris de madeiras nobres, que adicionem ao sabor. Mas a partir deste mínimo denominador comum é cada um por si. E aí, meu caro, só passam a existir dois tipos de vinho: aqueles dos quais você gosta, e os que considera ruins.
(Publicado originalmente na edição 33, de ago/set de 2005, da revista Semana 3)
Hoje em dia se diz muita bobagem sobre vinho. Especialistas como Robert Parker e diletantes oriundos de degustações de fim de semana não podem tomar uma taça sem encontrar traços de frutas vermelhas — talvez porque uva seja uma fruta vermelha... —, madeiras diversas, raposa, asfalto e até conchas quebradas. Bem, este colunista tem um alívio para quem nunca concorda com estes sujeitos: é simplesmente impossível, biológica e epistemologicamente, concordar com o gosto de alguém.
Uma leitura de “A árvore do conhecimento” [Palas Athena, R$ 44], dos chilenos Maturana e Varela, ajuda a esclarecer as coisas. Os dois biólogos tentam na obra estabelecer as bases biológicas do conhecimento humano. Os meandros da teorização são complexos e não interessam muito aqui nesta revista dedicada ao espairecimento. Basta saber: o que chamamos de “comportamento” de um organismo é a manutenção de correlações internas. O sistema nervoso não sabe que está caminhando, limita-se a manter certo nível de tensão muscular, de acordo com as informações sobre a posição do corpo no espaço e resistência do solo enviadas pelos cinco sentidos. Pois bem. Acontece que, como cada ser vivo cresce e organiza seu sistema nervoso de maneira diferente, porque é submetido a estímulos diferentes, sua “estrutura” está preparada para interpretar as sensações de uma maneira específica a ele e somente a ele.
Ora, tudo o que “sentimos”, sentimos apenas na mente. Nossos olhos, nariz, boca e ouvidos não sentem nada, apenas enviam sinais elétricos que são interpretados no cérebro. O mesmo cérebro que foi estruturado de acordo com nossa história de vida única, de modo que só pode interpretar as sensações à sua maneira única. Em outras palavras: ninguém pode sentir o mesmo gosto que outra pessoa sente ao tomar um vinho.
É óbvio que existe um mínimo denominador comum. Afinal, comemos as mesmas coisas que nossos concidadãos comem durante uma vida inteira, então aprendemos o que é gosto de abóbora, cor de ameixa, cheiro de abacaxi e tudo o mais. Mas a partir do momento em que se entra no sabor de asfalto derretido ou de cerejas crocantes, bem, aí é cada um por si, meu caro!
Nada surpreendente que Lawrence Osborne chegue à mesma conclusão em seu excelente “O connaisseur acidental” [Intrínseca, R$ 39]. O jornalista viaja pelos principais centros produtores de vinho e visita as principais vinícolas, para descobrir o que define um bom vinho e de onde vêm as associações mentais piradas de Robert Parker. Osborne inclui em cada parágrafo goles do melhor humor britânico e não poupa nem a si mesmo, fazendo pouco de suas próprias habilidades degustativas sempre que pode.
Lá pelas tantas, ao experimentar um vinho cujo nome infelizmente não posso reproduzir aqui, já que esqueci de sublinhar a passagem, sente que o líquido tem o sabor da biblioteca de seu pai. Com o detalhe de que seu pai jamais teve uma. Mas por que o vinho não poderia lhe causar essa sensação? Não será esse o papel do vinho, bem como de qualquer obra de arte: evocar imagens que não existem? Em todo caso, foi o único durante a tal degustação a associar o sabor com uma biblioteca paterna. A sensação era dele e apenas dele.
Como o gosto não é e não pode ser universal, o que define a posição de um vinho nas listas de revistas especializadas e connaisseurs, mostra Osborne, é um misto de marketing e às vezes qualidade. Há vinhos tão bons quanto o Lafite por aí, mas nem todos têm a família Rothschild por trás. Como coloca o autor, pagar 600 dólares por uma garrafa não passa de um ato de superstição. Ou, nas palavras do vinhateiro californiano Bill Cadman, “os ricos gostam que lhes digam do que eles devem gostar”.
Evidentemente, como acontece com outros alimentos, há um mínimo denominador comum no mundo dos vinhos. Um processo cuidadoso de fermentação, um terroir que traga características interessantes à bebida, barris de madeiras nobres, que adicionem ao sabor. Mas a partir deste mínimo denominador comum é cada um por si. E aí, meu caro, só passam a existir dois tipos de vinho: aqueles dos quais você gosta, e os que considera ruins.
(Publicado originalmente na edição 33, de ago/set de 2005, da revista Semana 3)
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